quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

SOPÃO COM LETRAS DE MACARRÃO - Réquiem pelo ENEM

Acreditar que “no bucho do analfabeto letras de macarrão fazem poema concreto”; que isso é verdadeira Poesia significa declarar adesão ao “estado de coisa” que leva à falência completa dos múltiplos aspectos da Atividade tipicamente humana.

O que se esconde por trás da beleza da construção poética na metáfora do bucho “analfabeto” cheio de letras comestíveis é a face monstruosa da existência aprisionada ao campo perceptivo material e instantâneo que resume o “consumir” ao  “poder de compra” dos suprimentos básicos para a sobrevivência do organismo. É a celebração da exclusão dos muitos que se encontram impedidos de uma formação continuada da Mente em processos de letramento signitivos mais elaborados – reservado, sabemos, a bem poucos.

Isso é indecente e inaceitável para muitos – entre os quais me incluo; porque “a gente não quer só comida” nem aceita, sem protesto, ser rotulado pela quantidade de letras indigestas que trazemos no bucho!

Vou relatar uma ocasião oportunizada pela “TV em aberto” na qual o “poder de compra” que permite acesso à uma ferramenta da  tecnologia da informação e comunicação ilustra exemplarmente a face tenebrosa do “estado de coisa” à qual me refiro aqui, ou seja, o “aprisionamento” ou “congelamento” do valor das conquistas materiais à máxima pragmatista transnacionalizada do “consumo logo existo.”

Em um programa jornalístico dedicado à crônica policial havia um “momento” no qual, em direto (ao vivo), telespectadores podiam interagir com o “apresentador” através do uso do SCAPE (tecnologia que permite interações à distância com áudio e imagem instantaneamente) – cognominado jocosamente  “iscape” (escape) pela corruptela não totalmente ingênua das classes menos fluentes nos modos “eruditos” de comunicação verbal.

Indagado em entrevista dirigida, conduzida pelo apresentador do programa, a respeito de questões abordadas pela “pauta” do dia, o telespectador, orgulhoso na exibição púbica pela TV da conquista do seu minúsculo “sonho de consumo” (PC com acesso à Internet)  revelava,  sem demonstrar constrangimento, paredes feitas de compensado do “barraco” improvisado na periferia de Salvador que lhe servia de moradia. Repetia, orgulhoso, por “domínar” o uso do Scape a mesma resposta a toda e qualquer eventual observação do apresentador:

- Com certeza!

Para quem sabe que a tecnologia em uso no barraco do telespesctador do relato é um “sonho” ainda a ser democratizado na Escola Pública, fica evidente as contradições das políticas “populistas” de acesso ao consumo e “mensuração” da “linha de pobreza” e do “aprendizado escolar” - absolutamente desconectadas de investimentos nos processos de letramento signitivos ou de formação intelectual crítica.

Choca o desperdício do uso exibicionista-voyerista da fluência no letramento informático; choca o domínio de possantes motocicletas para demonstração das habillidades acrobáticas de usuários adolescentes que desprezam o respeito ao espaço dos outros no trânsito e tráfego de veículos e pedestres...

O uso pontual do SCAPE aqui explicitado revela escapamentos e vazamentos vários da Linguagem que poderiam desencadear uma discussão proveitosa e sem urgência de variadas questões que desafiam o psiquismo humano na contemporaneidade. Mas quem tem tempo para o que não enche barriga? Quem se importa com o que não dá “lucro”?

Resta-nos ao menos regurgitar o intragável sopão com letras de macarrão que os “sabichões” e “especialistas” em Políticas Educacionais tentam sádica e sordidamente nos empurrar goela abaixo através de insistentes “regulamentações” e “normatizações” para sustentarem a legalidade de suas ações e mascararem sua incapacidade para gerir o diálogo franco entre possibilidades várias de ser “incluído” e estar no mundo de bem com as imagens, as letras e os números...

A diversidade é pedagógica, já disseram. Não somos iguais!

Nem todas as “trouxas” são leves para serem transportadas de lá pra cá... Existem “malas” mais pesadas do que nos parecem... O esquife do ENEM é sem dúvida um fardo difícil e enfadonho de ser "carregado" origatoriamente, ainda que sustentado por tantas mãos.

 Ao ENEM, Requiem aeternam dona eis.

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