sábado, 19 de março de 2011

ERA UMA VEZ A PSICOLOGIA CIENTÍFICA (38)

O nono e últlimo capítulo intitula-se Wittgenstein, Vigotskii e o Entendimento Performáticocultural da Vida Humana [Wittgenstein, Vygotsky, and a Cultural-Performatory Understanding of Human Life]
subdivindo-se em três grandes itens Wittgenstein, Vigotskii [Vygotsky] e Formas de Vida e Formas de Alienação [Forms of Life and Forms of Alienation].

Os autores iniciam o capítulo relembrando que tanto Wittgenstein quanto Vigotskii estiveram empenhados na revisão crítica dos paradigmas científicos disponíveis no tempo em que viveram buscando expressar seu descontentamento com os procedimentos metodológicos, instrumental epistemológico e vieses dos métodos empregados para o conhecimento da atividade tipicamente humana. Afirmam que o descontentamento de ambos (Wittgenstein e Vigotskii) com os modos de pensar a colaboração de conhecimentos acerca da vida humana é o que os aproximou (os autores) da concepção vigotskiana do desenvolvimento e da filosofia da linguagem wittgensteiniana.

No item Wittgenstein Holzman&Newman mencionam o artigo que publicaram em Prática - Revista de Psicologia e Economia Política intitulado Um Novo Método para Nossa Loucura [A New Method to Our Madness] como exposição inaugural de suas opiniões críticas acerca das práticas hegemônicas da clínica terapêutica.

Reiteram que os escritos de Wittgenstein publicados entre 1919 e 1950 viraram a filosofia ocidental de ponta cabeça e expõem uma breve biografia deste pensador austríaco destacando sua aproximação inicial do pensamento antisemita, protonazista e homofóbico de Otto Weininger posteriormente revista autocriticamente pelo próprio Wittgenstein.

Revelam que o Wittgenstein maduro expressou sem temor seus tormentos por sua homossexualidade, origem judaica e a rigidez moral infligida pela vida profissional acadêmica em Cambridge, Inglaterra - onde atuou como notável representante dos interesses da burguesia e aristocracia intelectual européia.

Esclarecem que logo após a publicação de seu Tratado Lógico-Filosófico (discutido no capítulo terceiro) o próprio Wittgenstein teria sido o primeiro a reconhecer seu dogmatismo e equívocos conceituais tendo repudiado suas ideias ali divulgadas – algo que pode ser constatado, por exemplo, ao se conferir o prefácio à sua obra póstuma Investigações Psicológicas [Psychological Investigations] ou a biografia dele elaborada por Monk intitulada O Preço do Gênio [The Duty of Genius], publicada em 1990.

Informam que a filosofia antifilosófica de Wittgenstein da fase tardia lhes forneceram importantes subsídios para formularem sua abordagem clínica performáticocultural à vida emocional das pessoas. Revelam que a denúncia de Wittgenstein de que somos todos pessoas doentes e de que grande parte do que nos faz doentes é o modo como pensamos teria repercutido intensamente neles impactando seus modos de conceber a clínica.

Isso teria oportunizado a emergência de ânimo renovado na busca por novos ângulos para o olhar autocrítico-reflexivo a respeito de suas próprias práticas clínicas e os conduziu a libertarem-se da sobredeterminação de representações sociais ou semblantes (cadeias de significados aos quais nos apegamos de modo muitas vezes não consciente) desconectando o pensamento do processo histórico e cultural de fetichização (naturalização) das concepções mais cotidianas e predominantes da linguagem - que absolutamente descartam a problematização ideológica de sua dimensão signitiva ao reforçarem sua função comunicativa ou referencial, denotativa.

Wittgenstein e seu pensamento revolucionário, afirmam os autores, os auxiliaram a conceber a linguagem - o processo de produção da linguagem - como fenômeno que não se submete a nenhuma regra “oficialmente” deliberada – embora isso seja em geral aceito sem objeção pelas pessoas.

Encerram o subitem reafirmando seu compromisso com a de(s)construção da sobredeterminação fetichista (naturalizante) da linguagem e da linguagem científica em particular para revelar a extensão de submissão do pensamento das pessoas comuns a noções, assertivas e pressuposições ideologicamente contaminadas por relações assimétricas de poder tendo em vista o controle social massificado de seus modos de ser e pensar.

Com este objetivo de(s)construtivo instituíram a abordagem clínica performáticocultural como útil à uma prática terapêutica pós-modernista que ambiciona a retomada do fluxo do desenvolvimento humano, paralizado pela estática aristotélica (pré-condição do pensamento científico modernista).

No subitem Vigotskii [Vygotsky] expõem de modo abreviado a biografia do eminente psicólogo judeu bielo-russo destacando seu papel decisivo na fundamentação do pensamento filosófico marxistamodernista. Porém, conseguem identificar a gênese das abordagens contemporâneas ao psiquismo humano em suas ideias de inspiração marxiana particularmente quando este propõe o entendimento do método marxistamodernista (instrumento-para-resultado) como ferramenta e produto do estudo permanentemente atualizado (instrumento-e-resultado) lançando as bases teórico-práticas para a posterior colaboração de uma genuina epistemologia pós-modernista.

Revelam que o denso estudo do pensamento vigotskiano os levou a compreender a metáfora da zona de desenvolvimento proximal – que refere a epistemologia pós-modernista – como o lugar da vida sendo vivida inseparavelmente dos modos de ser e pensar das pessoas. Consideram que a permente atualização das práticas no instante em que são vividas produzem o ambiente sócio-históricocultural no qual os seres humanos colaboram, organizam e reorganizam suas relações uns com os outros e com o mundo natural, ou seja: a vida humana propriamente dita tomada simultaneamente “em si” e “para si.”

Reafirmam que as ideias de Vigotskii e Wittgenstein se fortalecem ao serem reunidas na síntese que propõem e passam a detalhar, nos subitens subsequentes, como ocorre seu aproveitamento na abordagem clínica performáticocultural criada por eles.

No subitem Cultural Não Cognitivo [Cultural Not Cognitional] ressaltam que tanto Wittgenstein quanto Vigotskii revelam as pressuposições e assertivas ideológicas que caracterizam a metafísica subjacente à filosofia e ciência hegemônicas ocidentais mas que Wittgenstein é mais enfático ao caracterizar a “metafisicalização” como “doença”, e o papel que a linguagem reificada tem no processo de mascaramento das relações assimétricas de poder nos mecanismos para controle cognitivo ou “paralização” do pensamento.

Segue-se a problematização de resultados de pesquisas pós-vigostianas que, do ponto de vista dos autores, permanecem fiéis ao “credo” cognitivista (racionalista-modernista) por não conseguirem ir além do “interpretativismo” dos jogos de linguagem em interações entre sujeitos com diferentes níveis de imersão cultural.

Seguem dando maior visibilidade aos fundamentos de sua abordagem provocativa no próximo subitem intitulado Visões acerca do Vocabulário da Mente [Views on the Vocabulary of the Mind].

Neste trecho do capítulo os autores distinguem dois tipos de visão nos descritores verbais da mente: a visão pictórica e a pragmática. A pictórica sendo fundamentalmente referencial sustentatia a clínica psicoterápica na qual o terapeuta apóia o sujeito na descrição de seus estados mentais internos procurando possibilitar uma descrição convincente, coerente e o mais honesta possível de seus estados emocionais. Neste tipo de clínica o terapeuta atribui a condutas não normativas rótulos padronizadores que “tranquilizam” o sujeito e seus familiares numa espécie de transcrição para o vocabulário especializado oficial da área de saúde mental.

Esclarecem que este tipo de clínica diagnóstica tem sido alvo de severas críticas embora seja o modo predominante dos tratamentos terapêuticos baseados na escuta dos depoimentos verbais do sujeito. Destacam o pioneirismo de Wittgenstein na objeção a este tipo de “preenchimento signitivo” da fala dos sujeitos por parte dos terapeutas e a apropriam-se de sua promissora noção de jogo de linguagem por parte de adeptos da visão pragmática – que destacam o uso instrumental de palavras em circunstâncias sociais específicas para o alcance do sentido “verdadeiro” do que é dito.

Em resumo, tanto a visão pictórica – uso signitivo referencial de palavras  - quanto a visão pragmática ou metapiscológica - usos sociais específicos de palavras – seriam, na opinião dos autores, insuficientes para revelar a impregnação ideológica reificadora ou naturalizante da linguagem. Para eles, apenas a vida sendo vivida de modo relacional atualizado (performático) é capaz de movimentar os processos de colaboração de significação nos usos da linguagem. Relembram-nos a atualidade da assertiva vigotskiana de que o pensamento não pode ser totalmente expresso em palavras; que elas (as palavras) apenas o completam.

Finalizam o subitem destacando o posicionamento vigostkiano-wittgensteiniano radicalmente contrário à visão cartesiana de adesão do referente (signo) à realidade objetal referida (objeto).

No subitem Performando a Diagnose [Performing Diagnosis] revelam que a Psicologia amparada na adesão do referente ao referido tornou-se o “paraíso” para a alienação (separação do produto do seu processo de produção) e que a Diagnose Clínica e seus artefatos para classificação padronizada “oficial” converteu-se no “trono celestial” sob o qual assenta-se a terapêutica tradicional.

Explicam que a escuta nos grupos de terapia social não tomam os enunciados como verdadeiros ou falsos; que eles são considerados falas de um roteiro improvisado (à moda da commedia dell’arte) colaborado poeticamente por todos; que não existem respostas a serem encontradas; que os terapeutas e demais membros do grupo não se encontram em busca de conhecimento; que o diagnóstico é performado colaborativamente de modo provisório não punitivo, não estigmatizante, não constrangedor, não autoritário.

Finalizam o subitem esclarecendo que estão convencidos de que, para eles, não é o diagnóstico que faz mal, mas é a sua suposta “verdade” alienada, autoritária, privada - advogada pela padronização classificadora da Psicologia Hegemônica - que gera grande sofrimento e dor.

Passam a expor o último item do capítulo intitulado Formas de Vida e Formas de Alienação [Forms of Life and Forms of Alienation] no qual definem a Psicologia Científica como o processo de mercantilização da subjetividade humana denunciando a “bruxaria” modernista como responsável por seu encantamento e exortação à adesão “alienada” aos valores capitalistas.

Denunciam que as supostas abordagens clínicas “científicas” ao tratamento da saúde mental desumanizam o sujeito por convertê-lo em um repositório bioquímico e um joguete para se obter remuneração com base na classificação de sua “enfermidade” conforme a padronização medicalizante para as “desordens” de comportamento (formas de ser não normativas).

Consideram indecente a aplicação grosseira do modelo epistêmico científico para entendimento da dimensão relacional da vida humana sendo vivida.

Retomam a noção wittgensteiniana de “formas de vida” para referir a dimensão paradoxal e dialética do ser humano capturado por formas de alienação no mundo capitalista para em seguida propor um programa de alerta para as armadilhas da alienação no mundo contemporâneo:

(1) Apoiar a organização e reorganização continuada da atividade relacional;

(2) Encorajar toda e qualquer atuação (performance) em favor da democratização não coercitiva, não opressora;

(3) Persistir na conversão das formas de alienação em formas de vida.

Finalizam o livro e sua exortação à prática de abordagens performáticoculturais na clínica psicoterápica advertindo que a criação de condições para emergência de formas de vida não suprime as formas de alienação porém altera radicalmente a relação das pessoas no mundo em que estas últimas são encontradas.

PALAVRAS DO CRUCIFICADO (3)

(1)      SEGUNDA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS
O sermão das Bem-Aventuranças [1]


Jesus
(Ficando em pé sobre o dispositivo cênico pivô de pedra) Bem-aventurados os humildes de espírito porque deles é o reino dos Céus! (Os seguidores aglomeram-se ao redor de Cristo) Felizes todos os que choram porque eles serão consolados (Os seguidores entreolham-se) Santificados os mansos porque herdarão a terra.
Coro de Homens Seguidores de Jesus
Aleluia!



Jesus
Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão a misericórdia.
Coro de Homens Seguidores de Jesus
Amém!
Jesus
Felizes todos os limpos de coração, porque verão à Deus. Santificados sejam os perseguidos por causa da justiça dos homens, porque deles é o Reino dos Céus!
        
         Burburinho entre os seguidores. O coro de atores performa Sermão do Bom Ladrão.[2]

Coro de Atores
O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas levam (...), são os ladrões de maior calibre e da mais alta esfera, os quais debaixo de mesmo nome e do mesmo predicamento distingue-se muito bem (...) Não são só ladrões (...) os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar, para lhe colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título, são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a adminstração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo: os outros, quando furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam!

Jesus
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão saciados.

        O coro performa Monólogo ao pé do ouvido/Bantitismo por uma questão de classe.[3]

Coro de Atores

Modernizar o passado
É uma evolução musical
Cadê as notas que estavam aqui
Não preciso delas!
Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos
O medo dá origem ao mal
O homem coletivo sente a necessidade de lutar
O orgulho, a arrogância, a glória
Enche a imaginação de domínio
São demônios os que destroem o poder bravio da humanidade
Viva Zapata! Viva Sandino! Antônio Conselheiro
Todos os panteras negras
Lampião sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza eles também cantaram um dia:
Há um tempo atrás se falava em bandidos
Há um tempo atrás se falava em solução
Há um tempo atrás se falava em progresso
Há um tempo atrás que eu via televisão
Galeguinho do choque não tinha medo, não tinha
Não tinha medo da perna cabeluda
Biu do olho verde fazia sexo, fazia
Fazia sexo com o seu alicate
Oi sobe morro, ladeira, córrego, beco, favela
A polícia atrás deles e eles no rabo dela
Acontece hoje
Acontecia no sertão
Quando um bando de macaco perseguia lampião
E o que ele falava outros hoje ainda falam
“Eu carrego comigo coragem, dinheiro e bala”
Em cada morro uma história diferente
Que a polícia mata gente inocente
E quem era inocente hoje já virou bandido
Para poder comer um pedaço de pão todo fodido
Banditismo por pura maldade
Banditismo por necessidade
Banditismo por uma questão de classe!


        Rumoroso tumulto no coro seguido de um longo silêncio. Jesus caminha sozinho pela praia; colhe um graveto no chão e passa a rabiscar na areia com ele.



[1] MATEUS: 5
[2] VIEIRA, Pe. Antônio. Sermão do Bom Ladrão. Revista da Bahia. Salvador: EGBa, 2ª Ed., n. 27, p. 01 [Pronunciado na Igreja da Misericórdia de Lisboa, no ano de 1655].
[3] Chico Science in Da Lama ao Caos CD editado pela Caranguejos com cérebro&Chaos/SONY&BMG

ERA UMA VEZ A PSICOLOGIA CIENTÍFICA (37)

Passam a desenvolver o próximo item do capítulo intitulado Terapia Social [Social Theraphy] conceituando o que por eles é referido por esta consigna: a abordagem clínica não científica, não interpretativa, não autêntica, relacional e teórico-metodologogicamente fundamentada no conceito materialista-históricodialético de ATIVIDADE que vem sendo desenvolvida e aperfeiçoada pelos autores e seus colaboradores nos últimos vinte e cinco anos, ou seja, uma prática clínica que, provisoriamente, poderia ser caracterizada como psicologia clínica desenvolvimental.

Consideram sua prática clínica uma antipsicologia por desafiar as raízes míticas da Psicologia Hegemônica, algo que consideram ter deixado bastante claro no capítulo sétimo do livro. No entanto esclarecem que rejeitar o “conto” da Psicologia sobre o desenvolvimento não implica rechaçar a existência da atividade em desenvolvimento do psiquismo humano.

Enfatizam o foco nos processos criativos de colaboração da linguagem na prática clínica opondo-se ao modo usualmente reificado de relacionar-se com as palavras - dominante nos processos psicoterápicos. Revelam sua preocupação com abordagens não desenvolvimentais modernistas e neomodernistas que usam a psicologia e a psiquiatria oportunisticamente para se autojustificarem.

Reiteram que seu compromisso é com o alívio dos sintomas e busca colaborada para desvendar os mecanismos de controle ocultos em “rótulos” científicos reificados para as supostas causas da “doença” do paciente.

Consideram exitosos seus empreendimentos no tratamento da dor e do sofrimento emocional das pessoas através da conscientização dos processos de “recalcamento” dos propósitos ideológicos, moralizantes, metafísicos e cognitivistas dos “rótulos” e “estigmas” medicalizantes usados subrepticiamente pela Psicologia hegemônica.

Sua preocupação clínica recai nos efeitos devastadores da “psicologização” banalizadora institucionalmente ratificada que orienta em geral as práticas terapeuticas supostamente “científicas” - amplamente consideradas “corretas” e aceitas acriticamente pelos considerados “doentes mentais.”

Para os autores, só com a experimentação colaborada de novas formas de pensar e atuar (performar) em grupo seria possível promover um processo de empoderamento do “enfermo” e o apoio a novos modos de ele atuar e pensar o mundo. Neste sentido, uma abordagem performática - que valorize a coconstrução de significados na linguagem (verbal e não verbal) usada pelos enunciados no grupo terapêutico – auxiliaria as pessoas comuns a vivenciarem a capacidade humana de transformar, criar e recriar colaboradamente “quem ainda não se é” [Who we are not (p. 168)], libertando-se do aprisionamento paralizante antidesenvolvimental dos rótulos e estigmas medicalizantes de sua conduta.

Encerram o capítulo reiterando que, para isso, é fundamental opor-se radicalmente aos pressupostos antidesenvolvimentais supostamente “científicos” da Psicologia hegemônica.

PALAVRAS DO CRUCIFICADO (2)

PRÓLOGO

Coro de Atores
Um aviso aos não comunistas: tudo é comum; até Deus! [1]

Soam maracas, pandeiros e cabuletês. Escurecimento. Luz volta a incidir tenuamente recortando a cena. Vê-se populares aglomerados assistindo mulheres que velam um crucificado.

Curioso
Quem são estas mulheres que velam o crucificado?
Popular
Maria de Nazaré, a  mãe do morto.
Curioso
E a outra?
Popular
Madalena, a cobiçada cortesã da Judéia.
Curioso
E o sacrificado, quem é?
Popular
Dizem ser Jesus, o Cristo.
Curioso
O pregador andante?
Popular
Sim.  Aquele que acreditam ser o libertador dos Judeus.
Curioso
(Comovido) Triste fim da esperança do povo de Israel...

        Foco de luz verde sobre a composição da cena que reúne Jesus completamente desnudo, Maria e Madalena. Ouve-se Ave Maria de Schubert. Maria tem a cabeça de Jesus apoiada no colo; retira-lhe a coroa de espinhos; acaricia-lhe a fronte e os cabelos com ternura; eleva os olhos para os céus esboçando um sereno sorriso de confiança em Deus. Madalena lava os pés de Jesus com suas lágrimas enxugando-os com seus próprios cabelos em um doloroso choro silêncioso. O foco de luz verde decompõe-se em raios lazer em forma de esplendor e torna-se, pouco a pouco, intenso e incolor, extremamente brilhante, incidindo de cima para baixo no centro da cena. Cessam os raios lazer verdes. Uma nuvem de fumaça encobre a composição. O foco de luz cai em resistência ao tempo em que um farol xenon muito brilhante surge resplandecente ao fundo entre a névoa, incandescendo o olhar do público. Escuro.

(1)      PRIMEIRA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS
Jesus recebe as crianças [2]

        Som de ondas que se espraiam à beira mar. Jesus está na areia próximo ao mar, sentado sobre um dispositivo cênico pivô de pedra em reflexão profunda.[3] Barulho de crianças correndo em direção à Jesus em contente algazarra carregando flores do campo. Elas são impedidas de chegarem a Cristo por alguns de seus seguidores.

Primeiro seguidor
Quietas! Não façam barulho.
Segundo seguidor
Não vêem que Ele está meditando? Não o incomodem!

        As crianças silenciam obedientes.

Jesus
Deixem as crianças se aproximarem. Não as repreendam por que querem chegar perto. (Para as Crianças, sorrindo suavemente, encorajando-as) Venham, podem vir.

        As crianças o abraçam eufóricas enfeitando-lhe com alegria os longos cabelos, coroando-o com flores. Jesus sorri para elas e, com serenidade, as acaricia.

Jesus
(Levantando-se e dirigindo-se aos seguidores, abraçado a algumas crianças) Dos pequeninos é o Reino dos Céus. Quem não receber o Reino de Deus como uma criança, de maneira alguma entrará Nele. (Sorri com doçura para as crianças)

        Os seguidores abaixam a cabeça e se entreolham envergonhados e surpresos.

Música alegre de címbalos. Cântico Primeiro acompanhado de dança pelas mulheres e crianças seguidoras de Cristo.[4]  O Coro feminino e de crianças transcende a área cênica e movimenta-se junto ao público, acarinhando os pequeninos que se encontram eventualmente presentes na platéia e exortando-os a juntarem-se ao grupo dando-lhes as mãos.




Coro de Mulheres Seguidoras de Jesus

Vinde meninos
Vinde a Jesus
Ele ganhou-vos
Bênçãos na cruz!

Os pequeninos
Ele conduz
Oh! Vinde ao Salvador!

                Que alegria
Sem pecado mal
Reunir-nos
Todos afinal

Juntos na Pátria
Celestial
Perto do Salvador!

Já sem demora
A todos convém
Ir caminhando
À Gloria de além

Cristo vos chama
Quer vosso bem
Oh! Vinde ao Salvador!


                Que alegria
Sem pecado mal
Reunir-nos
Todos afinal

Juntos na Pátria
Celestial
Perto do Salvador

Que ama os meninos
Cristo vos diz
Ele quer dar-vos vida feliz

Para habitar
O lindo país
Oh! Vinde ao Salvador!

Que alegria
Sem pecado mal
Reunir-nos
Todos afinal

Juntos na Pátria
Celestial
Perto do Salvador


Eis a chamada:
Vinde hoje a  mim!
Outro não há que vos ame assim!

Seu é o amor
Que nunca tem fim
Oh! Vinde ao Salvador!


        As seguidoras de Cristo retornam ao longo da canção à área cênica, tomando pelas mãos as crianças e dançam uma espécie de ciranda em torno a Jesus; por fim deixam a área de cena com elas, bailando e cantando ao som de palmas e címbalos; durante os acordes finais do cântico devolvem os pequeninos a seus pais e responsáveis na platéia. Os seguidores perplexos murmuram entre si.




[1] BAUDELAIRE, Charles (s/d) Poemas em Prosa. São Paulo
[2] MATEUS: 13
[3] Consultar a escultura O Pensador de Rodin
[4] KALLEY, Sarah Poulton (Adap.)  “Vinde Meninos!” [“Come to the Saviour” de George Frederick Root.] In: Hinário Evangélico.  Editora, p. 525.

ERA UMA VEZ A PSICOLOGIA CIENTÍFICA (36)

O oitavo capítulo intitulado A Comunalidade Não Interpretativa e Sua Prática Clínica [The Noninterpretive Community and its Clinical Practice] tem início com os autores indagando qual seria a natureza deste tipo de ambiente de aprendizado (que conduz o desenvolvimento) no qual, entre outros, Vigotskii e Wittgenstein servem de sustentação teórica. Eles fornecem pistas do que vem a ser sua prática clínica: uma comunalidade não definida em termos geográficos e tampouco caracterizada por tarefas ou ideologia.


Definem os grupos terapêuticos performáticoculturais sob seu rigoroso acompanhamento clínico como ambientes apoiadores do desenvolvimento colaborativo de seus integrantes numa perspectiva não instrumental, não pragmática (instrumento-para-resultado), isto é: como método em ação (instrumento-e-resultado) de orientação vigotskiana.


Esclarecem que trata-se de um grupo de práticas “para si” - e não “em si” - parafraseando a metáfora marxiana para a consciência crítica. Ressaltam que os grupos de terapia social apoiados por eles se encontram em permanente interação com o mundo histórica e continuadamente criado e recriado, distinguindo-se de outras agremiações de orientação “socializante” de caráter autoperpetuador típico de instituições acadêmicas coorporativistas e dos centros destinados à “cura” da doença mental – que têm por objetivo alcançarem metas socialmente estabelecidas numa perspectiva instrumental (instrumento-para-resultado).


Reafirmam que pensar a socialização alijada da sua dimensão histórica reitera uma compreensão reificada (naturalizada ou alienada) da vida social – algo exaustivamente advogado pelo pensamento marxiano. Deste modo concebida, a socialização ressaltaria as distorções do entendimento da sociedade “em si” e a denegação de suas raízes econômicoculturais.


Alertam para uma forte tendência à superalienação nos modos de ser e pensar das pessoas na contemporaneidade – o que termina por engendrar um psiquismo “degenerado”. Reiteram que o objetivo da terapia social não é “mudar” o mundo mas ser parte dele e do seu processo permanente de atualização, ou seja, que o objetivo não é “substituir” o mundo mas pensá-lo como algo que necessita “ser substituído” [... our commitment is to be the world: not to “take it over” but “to be taken over.” (p.158) ].


Concluem a delineação de seu método (instrumento-e-resultado) revelando que este tem sido arduamente colaborado e aperfeiçoado ao longo de quase um quarto de século de árduo trabalho “experimental” devotado à um tipo de prática clínica, livre de interpretações e suposições “perniciosas” típicas do pensamento modernista. Explicitam as principais características do método que vivenciam: uma comunalidade de práticas “para si” que busca ser desenvolvimental, terapêutica, filosófica e performática.


No subitem Uma Comunalidade PARA o Desenvolvimento [A Development Community] Holzman&Newman defendem que uma comunalidade autoconsciente precisa rejeitar a sistematização filosófica e seus artefatos instrumentais. [13]


NOTA [13]
Aqui considerei adequado ressaltar na tradução o tipo de concepção de desenvolvimento dos autores explicitado na obra Todo Poder ao Desenvolver! [All Power to Developing!] de 2003 - não relacionado na bibliografia do livro - no qual ressaltam implicações teórico-práticas para abordagens críticas dos modos de atuação ou performance de sujeitos em interação em grupos quando se consegue distinguir entre estágios [stages = palcos] DE desenvolvimento e estágios PARA o desenvolvimento. Cf. JAPIASSU, Ricardo (2010) Metodologia do Ensino de Teatro.Campins:Papirus,p. 57




Para eles (os autores) o entendimento “estático” ou marxistamodernista do conceito marxiano de PRÁXIS como atividade prático-crítica revolucionária (instrumento-PARA-resultado) não é suficiente para concretizar uma “revolução” genuina nos modos de ser e pensar das pessoas: o que julgam genuinamente revolucionário é ressaltar e vivenciar o próprio mecanismo de atualização permanente da PRÁXIS por si própria (instrumento-E-resultado).


Esclarecem que o acompanhamento clínico das comunalidades devotadas à terapia social rejeita qualquer tipo de “cimento” conceitual particularmente a noção de “causalidade” - típica do pensamento modernista; entendem que este tipo de epistemologia “avaliadora” (julgadora) impede qualquer possibilidade de desenvolvimento e reafirmam seu compromisso com uma lógica que valorize a subjetividade e uma atividade psíquica que descarte o aprisionamento a verdades absolutas e todo o aparato instrumental pragmatista – caracterizado pela busca “obsessiva” por resultados (catarse ou cura).


Seu entendimento é o de que a procura pela verdade “objetiva” que tem caracterizado os estudos sobre o desenvolvimento da humanidade ao longo de 2500 anos é o principal obstáculo para o desenvolvimento continuado da vida humana; que existem sérios problemas com o uso de critérios supostamente objetivos para uma abordagem adequada ao desenvolvimento tipicamente humano; que as regras do objetivismo produziram uma geração paralizante e enfadonha de conhecimentos limitadores do crescimento pessoal e social das pessoas: a geração cognominada por Gergen como “politicamente identificada” [identity politics] mas que eles a preferem entender como “psicologicamente identificada” [identity psychology].


Finalizam o subitem esclarecendo que a comunalidade de práticas terapêuticas que defendem é bem menos próxima dos estudos objetivos aproximando-se mais do que seria o estudo subjetivo da objetividade. Mas que não tem compromisso com nenhuma destas duas vertentes; que os terapeutas sociais buscam descobrir – na prática – uma lógica para o desenvolvimento (a prática de um método, uma nova epistemologia) que baseia-se na atividade relacional comprometida com a emergência de novos modos de atuação do psiquismo humano em que só, e somente só, via APRENDIZADO seriam possíveis processos de DESENVOLVIMENTO – desde que houvesse a instalação de múltiplas e variadas zonas de desenvolvimento proximais, valendo-se da metáfora vigotskiana para referir os processos de formação social da mente.


O próximo subitem denomina-se A Comunalidade Terapeutica [The Therapeutic Community] e tem início com a problematização do ponto de vista marcadamente cognitivista (racionalista) do pensamento modernista a partir do qual todos os aspectos do psiquismo humano reduzem-se à cognição e suas várias instrumentalidades. Explicam que a hegemonia da noção de causalidade é uma consequência da ontologia da Física modernista e ressaltam sua importante contribuição para a falência da ingênua ambição socialista de “mudar o mundo” aproveitada pelo oportunismo capitalista pela mercantilização das políticas estadistas voltadas para o bem-estar social descartando suas preocupações assistencialistas (humanistas).


Revelam que a associação do poder bélico à ciência moderna, desde seus primórdios no século XVI até à descoberta da energia nuclear, tem sedimentado os elos entre conhecer e controlar; que esta tem sido a concepção dominante nos empreendimentos da Psicologia aplicada e particularmente das práticas clínicas em psicoterapia.


Os autores questionam os limites da medicalização na promoção do bem-estar das pessoas. Para eles, os procedimentos psiquiátricos têm por objetivo o conhecimento das causas físicas dos problemas para controlar melhor seus efeitos nas pessoas desprezando o papel dos vetores socioeconômicos na “doença” mental; que ao fim e ao cabo a medicalização não obtem êxito em promover o bem-estar das pessoas.


Para Holzman&Newman talvez o sentido das práticas terapêuticas não deva ser o de se tornarem mais “científicas” (medicalizantes) mas o de desafiarem o paradigma científico dominante na clínica; sua suposição é que o entendimento clínico obtido através da terapia possui uma natureza não científica, corroborada pelo pensamento de outros profissionais da psicoterapia que integram também a parcela de especialistas dedicados ao tratamento e cuidado da saúde mental comprometidos com o entendimento pós-modernista do psiquismo humano.


Finalizam o subitem esclarecendo que a comunalidade de práticas que advogam (grupos de terapia social) move-se através de uma atitude mais terapeuticamente desenvolvimental do que cognitivamente controladora; que a questão inaugural da prática clínica defendida por eles não é a descoberta do que é considerado “certo” ou verdadeiro mas de como seria possível mover-se de onde se está para onde se deseja ir.


Para os autores, o estudo do psiquismo e da vida dos seres humanos solicitam o desenvolvimento de uma nova epistemologia ancorada na valorização da dimensão relacional prático-crítica necessariamente comprometida com a mudança e transformação continuada das pessoas e do ambiente que estas colaboram.


No subitem A Comunalidade Filosófica [The Philosophical Community] reiteram que o questionamento da atividade e não a busca de respostas é o que movimenta os grupos de terapia social; que a singularidade da terapia social reside em interrelacionar a planificação antecipada dos modos de atuar com os resultados obtidos a partir da atuação; que são as contradições emergentes deste confronto dialético entre o pensar e o fazer em ação (atualizado/performado) que elevam sua prática clínica do abstrato ao concreto para alcançar o entendimento da vida social e da história enquanto algo que se encontra sendo vivenciado e colaborado simultaneamente.


Destacam a importante compreensão dos jogos de linguagem aos quais se referia Wittgenstein como fundamentais para o abandono da concepção modernista naturalizante da linguagem como “coisa em si.”


Encerram o subitem revelando que, para eles, o jogo continuado de palavras emergente no ambiente terapêutico é o que permite a “descoberta” de novos sentidos para o modo de ser e pensar das pessoas; o que abre portas para que todos venham a se sentir “melhor”; que o sentir-se “melhor” por parte de cada um dos integrantes do grupo (que inclui os terapeutas) é o que buscam ao formularem os princípios de sua prática clínica.


Com o subitem Uma Comunalidade Performática [A Performatory Community] os autores concluem o primeiro item do capítulo que explicita as principais características de uma atitude não interpretativa no tratamento clínico em grupo.


Advertem para os riscos de reducionismo no entendimento do que Vigotskii está a propor com a metáfora de zona de desenvolvimento proximal; algo comum (o reducionismo) em vigotskianos ortodoxos (marxistasmodernistas) que tomam a zdp como intrumento para “medição” padronizada do conhecimento cognitivo. Defendem que para Vigotskii a unidade para compreensão do desenvolvimento não é o sujeito em si ou para si no grupo mas o grupo de sujeitos em si e para si.


Esclarecem que o grupo, para (se) desenvolver, deve continuadamente criar e recriar seus modos de ser e pensar; que o desempenho do grupo e dos sujeitos em grupo deve ser performático (atuado/atualizado).


Finalizam o subitem exortando a necessidade clínica de engajamento lúdico terapêutico no permanente jogo de atuar (sendo quem não se é; experimentando novos modos de ser e pensar) e performar sem medo ou vergonha de permanecer fiéis a uma suposta autenticidade. Encerram, assumindo-se sem culpa inautênticos, perguntando retoricamente qual seria a fonte do certificado de autenticidade das pessoas. [We are shamelessly inauthentic. For from does authenticity derive? (p. 165)]


Passam a desenvolver o próximo item do capítulo intitulado Terapia Social [Social Theraphy]