quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

ISABEL (6)

TERCEIRA PARTE
TERCEIRA REGÊNCIA (1877-1888)
O Gabinete Cotegipe-João Alfredo

Coro de caifazes
(Recitam jogralescamente Saudação a Palmares de Castro Alves)
Nos altos cerros erguido
Ninho d’águias atrevido
Salve! – País do bandido!
Salve! – Pátria do jaguar!
Verde serra onde os palmares
- Como indianos cocares –
No azul dos colúmbios ares
Desfraldam-se em mole arfar!...
        Salve! Região dos valentes
        Onde os ecos estridentes
        Mandam aos plainos trementes
        Os gritos do caçador!
        E ao longe os latidos soam...
        E as trompas da caça atroam...
        E os corvos negros revoam
        Sobre o campo abrasador!...
Palmares! A ti meu grito!
A ti, barca de granito,
Queno soçobro infinito
Abriste a vela ao trovão.
        E provocaste a rajada,
        Solta a flâmula agitada
        Aos uivos da marujada
        Nas ondas da escravidão!

De bravos soberbo estádio,
Das liberdades paládio,
Pegaste o punho do gládio,
E olhaste rindo para o Val:
“Descei de cada horizonte...
Senhores! Eis-me de fonte!”
E riste... O riso de um monte!
E a ironia... de um chacal!... [Soam toques do alujá de Xangô]
        Cantem eunucos devassos
        Dos reis os marmóreos paços;
        E beijem os férreos laços,
        Que não ousam sacudir...
        Eu canto a beleza tua,
        Caçadora seminua!...
        Em cuja perna flutua
        Ruiva a pele de um tapir.
Crioula! O teu seio escuro
Nunca deste ao beijo impuro!
Luzidio, firme, duro,
Guardaste para um nobre amor.
Negra Diana selvagem,
Que escutas sob a ramagem
As vozes – que traz a aragem
Do teu rijo caçador!...
        Salve, Amazona guerreira!
        Que nas rochas da clareira,
        - Aos urros da cachoeira –
        Sabes bater e lutar...
        Salve! – nos cerros erguido –
        Ninho, onde em sono atrevido,
        Dorme o condor... e o bandido!...
        A liberdade... e o jaguar!
       
        Escurecimento lento do coro e luz sobre a cabocla. Atabaques seguem tocando cada vez mais alto o alujá de Xangô. Zumira caracterizada de cabocla executa em transe dança de guerra mágico-religiosa. Escuro rápido. Luz sobre a sala de audiência do Gabinete Cotegipe-João Alfredo.

Jose do Patrocínio
O manifesto que inaugura a nossa Sociedade Brasileira contra a Escravidão foi lançado e repercute intensamente em todo o país - de norte a sul. A Revista Ilustrada de Angelo Agostin tem sido uma publicação aliada importante na divulgação das conquistas dos abolicionistas; o Ceará inclusive já decretou o fim do escravismo em seu território! O país foi definitivamente tomado pela causa abolicionista... As pressões internacionais se intensificam e comandantes do exército imperial recusam-se a fazer o papel de capitães do mato para a captura de negros fugidos. Antônio Bento lidera os negros rebelados em número cada vez mais crescente a partir do Quilombo de Jabaquara, bem próximo à Corte.
Princesa Isabel
(Com um ramalhete de camélias à mão) Eu sei. Mas em atendimento às recomendações do Conselheiro Rodrigo Augusto da Silva eu devo agir moderadamente para não precipitar uma convulsão social... Lindas estas camélias vermelhas que me trouxe, agradeço-lhe a delicadeza... Confesso que a decretação da abolição por parte do Nordeste ousado, do Ceará, ano passado, exigiu uma resposta do Império para não levar o país a uma guerra civil... Então neste ano de 1885 foi decretada e aprovada a Lei Saraiva-Cotegipe
José do Patrocínio
Se me permite, Alteza, devo dizer que adiar oficialmente a abolição significa reforçar o movimento republicano - que aliás já se confunde com a nossa causa, impactado pela reverberação crescente da Revolução Francesa e da Independência dos Estados Unidos nas Américas e insulflada por setores insatisfeitos do exército. O adiamento dos Atos do poder imperial poderá lhe custar a coroa e significa o crepúsculo da monarquia no Brasil.
Princesa Isabel
Esse é um risco que a família imperial terá de correr... Sinto-me literalmente entre a “cruz” e a “espada”...
José do Patrocínio
Por favor, Alteza, não subestime o poder iconoclasta da “espada”... Sinto-me no dever de lembrá-la do sacrifício da Soror Angêlica pela lança das baionetas do exército imperial às portas do Convento do Carmo durante a resistência portuguesa na Campanha da Bahia... (A Princesa faz o pelo sinal) A separação da Igreja do Estado também é uma exigência dos novos modos de organização do trabalho...
Princesa Isabel
A Saraiva-Cotegipe é uma tentativa diplomática de ganhar tempo para promover um acordo entre monarquistas e “republicanos” e garantir o apoio dos senhores escravagistas latifundiários... de evitar uma guerra civil. O Decreto-Lei liberta todos os escravos com mais de 60 anos e promove um amplo programa de compensação aos seus ex-proprietários...



José do Patrocínio
Perdoe-me a franqueza e o meu ceticismo, Princesa, mas a Lei dos Sexagenários não apresentará os resultados significativos que a senhora julga obter... São poucos os cativos que conseguem atingir essa idade. Os que têm mais de 60 anos vão tirar seu sustento de onde? Estão sozinhos e abandonados à própria sorte!

        Soa o trovão e a l.uz muda. A Princesa impactada permanece em silêncio. Escuro lento ao som de uma tempestade furiosa que se aproxima.     Luz sobre o coro de negras ex-escravas que recita jogralescamente A canção do africano de Castro Alves.

Mãe Maior
Lá na úmida senzala,
Sentado na estreita sala,
Junto ao braseiro, no chão,
Entoa o escravo o seu canto,
E ao cantar correm-lhe em pranto
Saudades do seu torrão...
Mãe Menor
De um lado, uma negra escrava
Os olhos no filho crava,
Que tem no colo a embalar...
E a meia voz lá responde
Ao canto, e o filhinho esconde,
Talvez pra não o escutar!
Coro de negras ex-escravas
        “Minha terra é lá bem longe,
        Das bandas de onde o sol vem;
        Essa terra é mais bonita,
        Mas à outra eu quero bem!
“O sol faz lá tudo em fogo,
Faz em brasa toda a areia
Ninguém sabe como é belo
Ver de tarde a papa-ceia!
        Aquelas terras são grandes,
        Tão compridas como o mar,
        Com suas poucas palmeiras
        Dão vontade de pensar...
Lá todos vivem felizes,
Todos dançam no terreiro;
A gente lá não se vende
Como aqui, só por dinheiro.”
Mae Maior
O escravo calou a fala,
Porque na úmida sala
O fogo estava a apagar;
E a escrava acabou seu canto
Pra não acordar com o pranto
O seu filhinho a sonhar!
Mãe Pequena
O escravo então foi deitar-se,
Pois tinha de levantar-se
Bem antes do sol nascer,
E se tardasse, coitado,
Teria de ser surrado,
Pois bastava escravo ser.
Mãe Maior
E a cativa desgraçada
Deita seu filho, calada,
E põe-se triste a beijá-lo,
Talvez temendo que o dono
Não viesse, em meio ao sono,
De seus braços arrancá-lo!

        Escuro rápido. Luz sobre a senzala da fazenda Barro Vermelho. Dandara beija o filho ternamente embalando-o. Entram Don’Ana e Maria Judite.

Don’Ana Mãe Maior
Dandara!
Dandara
(Surpresa) Mãe Ana! (Acomodando o bebê que dorme em um cesto) Sua bênção! Motumbá?!
Don’Ana
Motumbaxé! Nossa Senhora da Boa Morte já lhe abençoou...
Dandara
Sim. Meu filho é lindo... Perfeito. (Acompanhando Don’Ana até o cesto) Veja Mãe Ana...
Maria Judite
Pega o cesto e vai tu e o menino com sua Mãe Ana...
Dandara
Não posso fugir, mãe, tô amamentando, cês sabem...
Don’Ana
Você e seu filho são livres agora: foram alforriados...
Maria Judite
A Irmandade da Boa Morte pagou por sua liberdade, fia!
Dandara
(Emocionada lança-se de joelhos aos pés de Don’Ana) Obrigada mãe Ana... Muito obrigada.
Don’Ana
Levanta e pega o menino. Judite vai reunir suas coisas pr’eu levar. Você vem comigo agora mesmo pra Cachoeira.
Maria Judite
(Reunindo as coisas de Dandara) Anda criatura, vai logo com tua mãe Ana ser livre - Tu e teu fio! Avia fia!

        Dandara pega o cesto e deixa a senzala com Don’Ana acompanhada por Maria Judite que leva seus poucos pertences reunidos em uma trouxa de pano improvisada. Escuro lento. Luz sobre o Quilombo de Jabaquara. Negros jogam capoeira ao som de berimbau e timbau. Ouve-se o cavalgar de um cavalo aproximando-se velozmente.

Mensageiro Negro recém-liberto
(Ofegante mas exultando de alegria) A Lei Áurea! A Princesa assinou a Lei... Cabou a escravidão! Cabou!

        A roda de capoeira se transforma em samba-de-roda. Os quilombolas comemoram eufóricos a liberdade. Ao fundo do palco surge em projeção a imagem do Decreto-Lei.

Uma voz masculina fora de cena [em off] lê e diz o conteúdo do Decreto-Lei. Ouve-se apenas o toque solitário de um berimbau.

Voz masculina

Declara extinta a escravidão no Brasil:

A Princesa Imperial Regente, em nome de Sua Majestade o Imperador, o Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte:

Art. 1°: É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil.

Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário.
Manda, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nela se contém.
O secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Comercio e Obras Publicas e interino dos Negócios Estrangeiros, Bacharel Rodrigo Augusto da Silva, do Conselho de sua Majestade o Imperador, o faça imprimir, publicar e correr.

Dada no Palácio do Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1888, 67º da Independência e do Império.

Princesa Imperial Regente.
Rodrigo Augusto da Silva

Carta de lei, pela qual Vossa Alteza Imperial manda executar o Decreto da Assembléia Geral, que houve por bem sancionar, declarando extinta a escravidão no Brasil, como nela se declara. Para Vossa Alteza Imperial ver. Chancelaria-mor do Império.

Antônio Ferreira Viana.

Transitou em 13 de Maio de 1888 - José Júlio de Albuquerque.


        Luz sobre o grande coro de negras e negros libertos.

Grande coro de negras e negros libertos
(Recitam jogralescamente fragmentos de estrofes finais de O Navio Negreiro de Castro Alves)
[...] Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormindo à toa
Sob as tendas d’amplidão...
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...
        Ontem plena liberdade,
        A vontade por poder...
        Hoje... cúmulo de maldade
        Nem são livres pra... morrer...
        Prende-os a mesma corrente
        - Férrea, lúgubre serpente –
        Nas roscas da escravidão.
        E assim roubados à morte,
        Dança a lúgubre coorte
        Ao som do açoite... Irrisão!...
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! Noite! Tempestades!
Rlai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...

        Uma imagem em vídeo da gigantesca bandeira nacional tremulando hasteada no mastro em frente ao Congresso Nacional é exibida ao fundo.

        E existe um povo que a bandeira empresta
        Pra cobrir tanta infâmia e covardia!...
        E deixa-a transformar-se nessa festa
        Em manto impuro de bacante fria!...
        Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta,
        Que impudentemente na gávea tripudia?!...
        Silêncio!... Musa! Chora, chora tanto
        Que o pavilhão se lave no seu pranto...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

        A imagem da bandeira desaparece lentamente [fade out]

        Fatalidade atroz que a mente esmaga!
        Extingue nesta hora o brigue imundo
        O trilho que Colombo abriu na vaga
        Como um íris no pélago profundo!...
        ... Mas é infâmia demais... Da etérea plaga
        Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
        Andrada! Arranca este pendão dos ares!
        Colombo! Fecha a porta de seus mares!

        Luz sobre uma taberna em São Paulo. Homens negros e brancos trabalhadores bebem em companhia de mulheres desfrutáveis ao som de um trio nordestino que executa forró pé-de-serra. Alguns casais dançam. Homens dançam com outros homens. Mulheres dançam entre si.

Antônio Bento
Arrumei uma colocação como segurança numa fábrica dos Matarazzo lá pros lado da Barra Funda...



Bundo
Tu teve sorte. Eu até agora num consegui nada fixo. Tô lavando penico e carregando água pra limpar a privada dos bacana da Avenida Paulista... Trabalho temporário...
Antônio Bento
Saimos de uma escravidão pra cair em outra... A do Capital
Bundo
Mas a capitá num é no Rio de Janeiro?!
Antônio Bento
Do Ca-pi-tal, Bundo: do dinheiro...
Bundo
Ah... É mermo. Quando a gente era escravo tinha comida, roupa e pouso de graça...
Antônio Bento
De graça?! A gente era espremido que nem cana na moenda...
Bundo
É mermo: a gente virava bagaço à força...
Antônio Bento
Agora a gente vira suco trabalhando nas fábricas de refrigerante e aguardente!

        Um grupo de militares agitadores se manifesta em uma mesa.

Primeiro agitador militar
Fora a família real!
Segundo agitador militar
Abaixo a monarquia!
Terceiro agitador militar
Onde já se viu mulé governar home?


Primeiro agitador militar
Aqui se vê!
Segundo agitador militar
O Império aqui veste saia! Fora a “Dona das Camélias”!
Terceiro agitador militar
É o Império de Saião! Êêêpa!

        Galhofa e zombaria dos taberneiros.

Primeiro agitador militar
Viva a República!
Freqüentadores da taberna
Viva!

        A Agitação arrefece.

Bundo
Que é essa tal de República?
Antônio Bento
Um Governo sem rei! O povo governa...
Bundo
E isso existe... Até nos quilombo e nas tribo tem rei?!
Antônio Bento
Ainda não existe aqui. Mas dizem que há em outras partes do mundo... Na França, na América do Norte...
Bundo
Na África existe?!
Antônio Bento
Se existe num tô sabeno... Só voltando lá pra vê...
Bundo
Tu quer voltar pra lá?!
Antônio Bento
Quero voltar pra Bahia... Pegar Dandara e meu fio... Trazer os dois pra “Sumpaulo”
Bundo
Mas cê num já tá com Zumira?
Antônio Bento
É proibido ter mais de uma mulé por acaso?
Bundo
(Rindo) Pros reprodutor que nem tu, não!

        Ouvem-se gargalhadas estridentes e uivos de molecagem dos freqüentadores da taberna. Escuro lento. Luz sobre a sala de cerimônias da casa de santo [candomblé] de Mãe Danda-Lund’Aruanda [Dandara] nos arredores de Cachoeira. Dandara, agora mãe de santo, ricamente paramentada está sentada em um trono de vime com um adjá na mão [sineta para condução do culto]. O xiré [roda de filhos e filhas de santo] move-se em direção horária ao som de atabaques e cantos rituais. Dandara puxa cantiga para Ogum. Os atabaques tocam um adarrum. Antônio Bento adentra a sala de cerimônias. Algumas filhas de santo incorporam Ogum e são prontamente auxiliadas por ekedes [cuidadoras de orixá]. Mãe Danda-Lund’Aruanda agita o adjá e suspende o toque de atabaques. Pede ao pé de ouvido a uma assistente que conduza Antônio Bento à sua presença. Antônio Bento lança-se de bruços aos pés de Mãe Danda-Lund’Aruanda saudando-a respeitosamente. Atabaques voltam a tocar para Ogum. Mãe Danda-Lund’Aruanda incorpora Oxum e é conduzida ao xiré e adequadamente paramentada para dançar pra este Orixá. Alabês tocam agora o Ijexá de Oxum. Mãe Danda-Lund’Aruanda dança para Oxum. Escurecimento lento. Luz sobre a sala de cerimônias vazia. Dandara e Antônio Bento estão frente a frente.

Antônio Bento
Vim te buscar, minha princesa.
Mãe Danda-Lund’Aruanda [Dandara]
Você entende que não posso ir? Agora sou zeladora do culto de Ogum nesta casa de Oxum... Sou a Yalorixá do Ilê Axé da minha família. Fui escolhida pra suceder Mãe Ana conforme as tradições da casa real de Ruanda... Tornei-me a Mãe de Santo do Axé: Fui batizada Mãe Danda-Lund’Aruanda de Oxum...
Antônio Bento
A família real será banida do Brasil... Estou com os republicanos!
Mãe Danda-Lund’Aruanda
A realeza de Ruanda não será banida neste pedaço d’África incrustado no recôncavo baiano. Enquanto estiver sob a minha matriarcal regência este Ilê Axé sobreviverá incólume à República, no Brasil!
Antônio Bento
Posso ver meu filho?
Mãe Danda-Lund’Aruanda
Nosso filho, você quer dizer.
Antônio Bento
Nosso filho. Posso ver o moleque?
Mãe Danda-Lund’Aruanda
Não é um moleque. É um rapaz, um príncipe... de Ruanda...
Antônio Bento
Posso ver o nosso príncipe?

Mãe Danda-Lund’Aruanda agita o adjá e uma auxiliar do culto se aproxima dela.

Mãe Danda-Lund’Aruanda
(Para a auxiliar do culto) Menininha, pede ao Fernando pra vir aqui.

        Menininha se retira prontamente.

Antônio Bento
É Fernando o nome dele?
Mãe Danda-Lund’Aruanda
Fernando Antônio Bento Valente da Silva. (Pausa) E Zumira?
Antônio Bento
Ficou lá em Sumpaulo... Cuidando da casa...
Mãe Danda-Lund’Aruanda
Quando você volta pra ela?
Antônio Bento
Depois que eu conhecer o menino e dizer pra ele que pode ir me ver quando quiser - se você deixar...
Mãe Danda-Lund’Aruanda
Oxossi é o dono do destino dele... O Santo que vai dizer se deixa ele ir ou não; e quando ele vai poder visitá-lo... Nando é filho de L’Ogum’n’Edé – uma qualidade de Oxossi que passa parte do tempo nas águas e parte do tempo nas matas... Parte do tempo com a mãe Oxum e a outra parte com o Pai Oxossi...
Antônio Bento
Como o Caboclo-Boto dos Aymoré?!
Mãe Danda-Lund’Aruanda
Onde cê conheceu o Caboclo-Boto?


Antônio Bento
Na aldeia Aymoré da foz do Rio Una... Ele que nos guiou até o Quilombo de Jabaquara... Quando fugimos da Barro Vermelho ficamos um tempo malocados na mata, na taba Aymoré perto da foz...
Mãe Danda-Lund’Aruanda
Faço gosto que ele passe um tempo contigo. Você é um guerreiro e ele precisa aprender a guerrear com o pai...
Antônio Bento
Vou ensinar ele a lutar capoeira. Deixa ele ir comigo. Depois ele volta pra cuidar da mãe ainda mais preparado... Afinal ele é o homem da sua casa, não é?

        Fernando entra na sala.

Fernando Bento
Sua Benção minha mãe, Motumbá?!
Mãe Danda-Lund’Aruanda
Deus te abençoe filho. Motumbaxé! Cê num queria saber quem era seu pai? É esse aí.
Fernando Bento
Sua benção meu pai?!
Antônio Bento
Deus te abençoe filho...

        Antônio Bento e Fernando se abraçam forte visivelmente emocionados. Soa o agueré de Oxossi. Escurecimento lento. Luz sobre a taba Aymoré. Tribalistas em círculo assistem a manifestação da Cabocla Oyá-Ssi da pena dourada.

Pajé Aymoré
Salve Cabocla Oyá-Ssi! Salve a pena de ouro da Rainha Mãe das mata! Salve Iara Mãe D’Água que pariu as mata!
Coro Aymoré
Salve!
Pajé Aymoré
Salve Oyá-Ssi Cabocla da pena dourada!
Coro Aymoré
Salve!
Pajé Aymoré
Salve a Mãe do ouro!
Coro Aymoré
Salve Cabocla Oyá-Ssi!
Pajé Aymoré
Salve as água dourada da mata!
Coro Aymoré
Salve!
Pajé Aymoré
Salve as água mãe das mata!
Coro Aymoré
Salve Cabocla Oyá-Ssi!

Cabocla Oyá-Ssi manifestada em um sacerdote da tribo executa dança ritual com arco e flecha ao som do aguerê de Oxossi. Dá finalmente o seu grito de guerra estremecendo o corpo do sacerdote. Escurecimento súbito.




EPÍLOGO

Luz sobre a sala de audiência do Gabinete Cotegipe-João Alfredo.

Princesa Isabel
Está feito... O escravismo é página virada neste país.
José do Patrocínio
Fala-se em golpe militar... Um levante do exército para “derrubar” a “Dona das Camélias” inclusive apoiado por abolicionistas agora republicanos que, sem nenhum constrangimento, aceitam serem financiados, cinicamente, por senhores ex-escravagistas. Rui a viga mestra da monarquia no Brasil. É o fim, Alteza... O fim...
Princesa Isabel
Talvez o início... de um novo tipo de nobreza. Uma nobreza de outra natureza, meu caro... A nobreza de caráter... (Pausa) As camélias florecem resplandescentes nos jardins da nação mas sua colheita ameaça ser devastada pelos incendiários republicanos. É preciso sermos realistas: não há recursos para atendermos o que nos exigem os senhores ex-proprietários de escravos. (Indignada) Não satisfeitos com os ganhos que tiveram ao longo de séculos ousam agora extorquir o Tesouro Nacional em nome de uma supostamente “justa” indenização pela perda dos seus “bens” – pessoas, gente de cor... Por isto apóiam a República; para saquear o Erário com o auxílio de seus asseclas no Parlamento, apoiados por mercenários do Exército comprados a peso de pluma quando se estima a soma que eles pretendem obter do Estado; Por isso barraram o meu projeto de reparação e inclusão social dos povos escravizados – a genuína dívida a ser paga. (Altiva) Tudo isso se apresenta muito repugnante para mim e talvez o exílio em França seja mesmo o destino que não ingenuamente ajudei a traçar para a família real brasileira... Basta de sangue irrigando as terras desta nação. (Humilde) Às mulheres cabe muitas vezes ceder em nome da pacificação dos desejos dos homens... O orgulho masculino jamais suportou a renúncia ou a invaginação... Sei que o senhor entende o que digo. Eu não poderia deixar de poupar meu Pai, ancião, desse constrangimento. (Soberba) Penso ter cumprido corajosamente o meu papel e sei que o fiz inscrevendo com destemor o meu nome na história do breve Império brasileiro – que só dourou pouco mais de meio século. Tenho a firme convicção de que o tempo pode ocultar para sempre - ou revelar – muitos segredos de Estado. (Irônica) Tal qual uma personagem trágica deve ser punida a “Dona das Camélias” – que é como os homens do exército e o povo da oposição cognominam derrisoriamente em galhofas, nas tabernas e praças deste país, a minha imperial regência. Minha harmatia ou hybris,[1]  a “falha trágica” pela qual serei punida, é a de ter contrariado a ordem machista que sustentou o progresso deste país às custas do escravismo. Estou determinada a arcar com o ônus da minha decisão. (Resignada) Que vingue pois a República – (Com dignidade) mas sem prejuízo da honra da Casa de Bragança! Eu sou o “Império de Saião”, o Brasil que baniu para sempre a escravidão. A suspensão do meu direito de reinar não impedirá jamais de circular sangue nobre nas veias da progênie bragantina pelos séculos e séculos... Tampouco que eu seja cognominada Isabel, A Redentora. Amém.




 
        Percussão retumbante. Uma chuva de camélias vermelhas em pétalas cai sobre a Princesa iluminada por um único foco de luz. A imagem da pena de ouro com a qual foi assinada a Lei Áurea surge lentamente [fade in] ao fundo do palco sobrepondo-se à última foto da família real no Brasil antes de seguir para o exílio. Ouve-se estrondosa e majestosamente a abertura da ópera O Guarani de Carlos Gomes. Escurecimento lento total da cena.



APOTEOSE FINAL

O elenco desfila a escola de samba Unidos de Vila Isabel. Na comissão de frente ilustres abolicionistas com camélias à mão;  a seguir uma ala de baianas à moda da Irmandade Nossa Senhora da Boa Morte; segue-se a bateria de capoeiristas e o carro de Zumbi dos Palmares; logo após o carro do Caboclo e da Cabocla; por fim o carro da Aurum Imperial Regência com Isabel - a Redendora, em traje majestoso, com manto, jóias e coroa, emoldurada por rico e gigantesco esplendor em forma de brasão do Império.


PAVIS, Patrice (2001) Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, p. 191 e 197.

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