terça-feira, 31 de maio de 2011

TUMBEIRO MALÊ - a ilha (13)


Um bando de araras sobrevoa a cena com gritos estridentes.

QUARTA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

A luz volta a incidir sobre a cena onde estão, agora, Antônio Maria e Adé-Cunhatã treinando o uso do archote a beira mar. Os arqueiros e lanceiros tupis-cariris e pataxós saem da água e despedem-se de Maria e Adé-Cunhatã. Adé-Cunhatã está sem o manto, desnudo. Com a saída dos tupis-cariris e pataxós Antônio Maria o envolve por trás, a pretexto de demonstrar-lhe como segurar adequadamente o cabo do archote.

Antônio Maria
Isso... (Sussurando-lhe ao ouvido) Assim mesmo cunhatã... Relaxe, você consegue!

       
Adé-Cunhatã faz estalar o chicote na areia seguidas vezes ofegantemente até apoiar-se exausto no tórax de Antônio Maria inclinando a cabeça para cima ao expirar aliviado como em um gozo espermático.

Adé-Cunhatã
(Ofegante) Consegui! Consegui...

        Maria beija-lhe carinhosamente o pescoço.

Antônio Maria
Sim. Você está pronto agora.

        Maria sai de trás de Adé-Cunhatã e tira a roupa.

Antônio Maria
Vem! Vamos na água? (Sai correndo em direção à praia jogando as calças para o alto) Vem! Vem! Vamos!

        Adé-Cunhatã sai em disparada a seu encontro gargalhando de felicidade. Toque de agogôs e percussão alegre. Escuro.


Luz. Aos pés da imagem de São Sebastião Antônio Maria está desnudo sendo depilado por Adé-Cunhatã e pinta os olhos com carvão resgatando sua maquiagem original, desta vez mais forte, para cerimônia de fechamento do corpo aos pés da imagem do Grande Caçador. Os tupis-cariris e pataxós se pintam uns aos outros.

Adé-Cunhatã
Caboclo fechar corpo de Maria pra não morrer furo de flecha...
Antônio Maria
(Finalizando a maquiagem à frente de um caco de espelho) Sabe a história do representado nesta imagem?
Adé-Cunhatã
Sei que totem é bom pra curar ferida de flecha.
Antônio Maria
Como sabe disso?
Adé-Cunhatã
Caboclo me disse...
Antônio Maria
(Retirando os brincos de prata e substituindo-os por penas brancas e pretas de gavião dos tupis-cariris atravessando os furos das orelhas) Disse?
Adé-Cunhatã
Sonhei ele.
Antônio Maria
O nome do representado é Sebastião, São Sebastião. Foi curado milagrosamente após ter tido o corpo crivado de setas...
Adé-Cunhatã
Eu pede totem proteger você de flechada no mata-maroto...
Antônio Maria
Acredito no poder de São Sebastião!
Adé-Cunhatã
Agora Maria é guerreiro guarani pronto pra “travessar” mar...
Antônio Maria
(Entregando-lhe o par de brincos de prata) Fica com eles para lembrar de mim!

        Adé-Cunhatã sorri.

Escuro.

Maria está pintado e maquiado como um guerreiro tupi-cariri e encontra-se só, olhando o horizonte. Está com o seu chapéu de

pluma nas mãos e usa suas rotas botas. Ouve-se um longínquo toque lamentoso de berimbau.

Antônio Maria
(Com olhos marejados) Galego... Galego... Onde você está? Onde? Será que ainda brilham seus olhinhos de esmeralda? (Recita Vinícius de Moraes) [1]


Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.



Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim muito e amiúde,
É que um dia teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

        Escuro. O berimbau segue soando cada vez mais distante.


QUINTA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

         Ruído de ondas espraiando-se na areia. Na beira do mar, à noite, tudo está pronto para o embarque de Antônio Maria e a travessia dos velocistas pataxós e tupis-cariris a nado até Salvador. Adé-Cunhatã com o manto de penas sacode o maracá e dá baforadas do poró sobre os nadadores pronunciando palavras mágicas. Os velocistas fazem aquecimento para a largada. Cada guerreiro pataxó e tupi leva um archote enrolado no pescoço como se fosse um colar. Antônio Maria está de pé à frente da canoa. Usa lenço amarrado na cabeça, embaixo do chapéu, e está calçado com suas botas embora use tanga selvagem de penas. Um guerreiro guarani na popa da

embarcação afasta a canoa da praia impulsionando-a com o remo. Um canto de coruja corta o silêncio noturno. Adé-Cunhatã permanece em pé à beira mar vendo a canoa partir. Maria faz o pelo-sinal.

Antônio Maria
Valei-me Nossa Senhora da Boa Esperança! Valei-me São Sebastião!

Escuro. Pio renitente da coruja.



[1] MORAES, Vinicius (2003) “Soneto do amor total” In: Nova antologia poética, São Paulo:Schwartz, p.174.

sábado, 28 de maio de 2011

TUMBEIRO MALÊ - a ilha (12)

SEGUNDA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

        O Cacique ao lado do Pajé recebe uma embaixada de encourados na entrada da aldeia em frente à paliçada com crânios humanos posicionada nas extremidades do palco/arena forrado de areia branca. Entre os crânios a cabeça encarniçada do capitão Pedro Sá.

Embaixador Encourado
Salve grande Cacique Guarani!
Cacique Guarani
Salve! (Pausa) Fala a que veio.

Embaixador Encourado
Viemos anunciar a visita de Dona Maria Felipa.
Cacique Guarani
Ela ser bemvinda por povo guarani.

        O embaixador sinaliza para que alguns encourados retornem para avisar a Maria Felipa que ela será recebida amistosamente.

Embaixador Encourado
Dona Maria está vindo de Cachoeira onde está funcionando o Governo Provisório da Província, que foi autorizado por ordem de D. Pedro I, em carta assinada em 12 de abril próximo passado!
Cacique Guarani
Portugues ainda toma conta de Bahia?
Embaixador Encourado
Sim. Interceptam navios com comida para povo do Recôncavo e da ilha. Santo Amaro está em situação de calamidade pública. Faltam remédios e alimentos. Dona Maria vem pedir seu apoio para o “mata-maroto” em Salvador...
Cacique Guarani
Mata-quê?!


Embaixador Encourado
Mata-maroto. Ações terroristas. Ataques isolados a membros do exército e marinha portuguesa em Salvador a partir do mar...
Cacique Guarani
Vem pedir apoio canoeiros guarani. É isso?
Embaixador Encourado
Sim.
Cacique Guarani
Mas nós já ajudou Lobo do Mar com saque galeão naufragado! Deu pólvora a ele, comida, bebida e prisioneiro de guerra no mar. Ela vem no barco de Lobo do Mar?
Embaixador Encourado
Não. Lord Cochrane seguiu com uma legião de voluntários, marujos e prisioneiros mercenários para praia de Inema onde encontrará com as legiões do comodoro francês Pedro Labatut, conforme orientação do general Lima e Silva que está na capital da Província. De lá seguem para a campina de Pirajá onde vão se juntar às tropas de Dona Maria Quitéria – que seguirão por terra. Despachou uma velha senhora inglesa para o Rio de Janeiro em Cachoeira e entregou um marujo bom no uso do chicote para treinar guerreiros tupi-cariri e pataxós - que estão vindo com Dona Maria e a carroça. Ela vai lhe explicar do que precisa.

       

A tribo aos poucos cerca o embaixador encourado e participa curiosa da conversação com o cacique. Um guerreiro Guarani/Sentinela adentra a taba correndo.

Guerreiro Guarani Sentinela
Está vindo! Lá... Carro com grande caçador!

        Rumor e movimentação dos guaranis.

Embaixador Encourado
Dona Maria é zeladora do grande caçador! Vai levar a imagem do “dono da terra” para dar proteção e celebrar a vitória sobre os portugueses. A imagem é um presente do comodoro mercenário francês, encomendada ao artista plástico Manoel Inácio da Costa.

        Soam fanfarras e adentra o carro com a imagem do caboclo seguida de parte da tropa de encourados e negros liderada por Maria Felipa posicionando-se na extrema direita do palco. Adé-Cunhatã bate cabeça aos pés da imagem do caboclo. Maria Felipa adentra a cena marchando destemida usando traje encourado[1] e portando garruncha, bornal e cartucheiras trançadas sobre o peitoral à moda de cangaceiros.
 

Ô boa noite!
Venha ligeiro...
Ver a chegada do caboclo negro
(Bis)

Cacique Guarani
Salve Dona Maria!
Maria Felipa
Salve cacique Matalauê, grande guerreiro guarani!
Cacique Guarani
O que Dona Maria quer?!
Maria Felipa
Vou ser breve porque não temos tempo a perder. Vim pessoalmente pedir o seu apoio para o mata-maroto na capital da Província. Sei que os canoeiros guarani conhecem bem as correntes marítimas e sabem como chegar em segurança ao Porto da Barra em Salvador. Trouxe alguns nadadores-velocistas pataxós e tupis-cariris da Casa do Visconde de Cairu que farão a travessia a nado de Mar Grande a Salvador, guiados por uma canoa guarani.
Sinaliza para trazerem os velocistas pataxós e tupis-cariris. Os pataxós e tupis-cariris adentram o espaço cênico. Os pataxós usam pintura de guerra e penas vermelhas e pretas; os tupis-cariris usam


penas de gavião preto e branca espetadas nas orelhas e maquiagem de guerra nos olhos e corpo.

Maria Felipa
Para todos os efeitos, a canoa guarani estará em atividade pesqueira e imagino que não levantará nenhuma suspeita - por se tratar de uma embarcação isolada. Sugestão do general mercenário Pedro Labatut, que também luta ao nosso lado.
Cacique Guarani
Guarani sabe chegar de canoa até Porto da Barra. Mas depende de maré. Tem que esperar lua certa.
Maria Felipa
Quando for possível, conduza-os até Salvador. Os velocistas pataxós e tupis-cariris ficarão sob sua liderança cacique! (Para os pataxó) Entenderam? (Para o cacique Matalauê) Os tupis-cariris lutam liderados pelo Visconde de Cairu do Castelo da Torre da Casa de Garcia D’Ávila a partir do litoral norte de Salvador e são excelentes lanceiros e arqueiros. Os pataxós resistem em Coroa Vermelha e Monte Pascoal e são ótimos nadadores.

        Velocistas pataxós e tupis sinalizam afirmativamente com a cabeça.



Maria Felipa
Tenho outro pedido. Há um chalaça que servia no galeão naufragado e que me foi recomendado por Lord Cochrane para fazer treinamento dos velocistas pataxós e tupis-cariris para o uso certeiro do archote. Ele deve ser conduzido na canoa e desembarcar em segurança no Porto da Barra para acompanhar os velocistas em suas ações terroristas silenciosas, sem disparo de arma de fogo, na calada da noite, em toda a capital da Província. Isso será fundamental para dispersar a atenção dos portugueses e facilitar a entrada das tropas lideradas por Maria Quitéria pela estrada das boiadas a partir da campina de Pirajá. Vou providenciar a condução dos encourados para o continente a partir da contra-costa, porque o forte de Itaparica já está dominado e sob nosso poder; também porque a travessia marítima é o caminho mais rápido e seguro até Pirajá.
Cacique Guarani
Onde está “chassala”?
Maria Felipa
(Para o cacique com bom humor) Cha-la-ça! (Para alguns guerreiros encourados) Tragam o chalaça!

        Encourados deixam a cena e retornam com Antônio Maria.




Maria Felipa
Veja cacique! (Para um encourado entregando-lhe uma garruncha) Tente alvejar o chalaça! (Para Antônio Maria) Antônio, mostre o que sabe fazer com o chicote!

        Antônio Maria exibe sua grande habilidade no uso do archote desarmando o encourado facilmente. Faz estalar o chicote no chão após obter êxito em sua ação. Murmúrio, espanto e admiração da tribo. Maria Felipa e sua tropa se retira com o carro do caboclo negro entoando cantiga ritual.

Despedida de caboclo!
Vai chorar...
Vai chorar pra soluçar!
Vai Chorar...
[Bis]

Escurecimento lento ao som dos estalos do chicote de Antônio Maria no solo. Ouve-se o aguerê de Oxossi cada vez mais alto. Escuro.




TERCEIRA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

        Antônio Maria está com o crânio do capitão nas mãos em frente à paliçada. É observado por Adé-Cunhatã que se encontra escondido na mata.

Antônio Maria
O que fizeram com o senhor, meu capitão?!

        Aperta o crânio do capitão contra o peito acariciando a caveira enquanto chora baixinho. Adé-Cunhatã aproxima-se comovido.

Adé-Cunhatã
Era seu amigo?
Antônio Maria
(Refazendo-se do choro) Meu comandante.
Adé-Cunhatã
Por que tirou cabeça da vara?
Antônio Maria
Para enterrá-la...


Adé-Cunhatã
Cacique não vai gostar. Tem que botar cabeça de volta lá!
Antônio Maria
Vai me denunciar?
Adé-Cunhatã
Se você coloca cabeça de volta na vara, não.
Antônio Maria
Tá. (Recolocando o crânio na vara) Eu coloco ela de volta...
Adé-Cunhatã
Tenho parte do corpo do seu capitão comigo... (Pausa) O resto tribo comeu.
Antônio Maria
Comeu?! Que horror, meu Deus! Que horror... Ele não merecia isso.
Adé-Cunhatã
(Posicionando-se atrás e muito próximo a Maria. Fala sedutor ao seu ouvido) Come guerreiro branco pra ter força do inimigo!

        Antônio Maria volta o rosto até ficar cara-a-cara com Adé-Cunhatã e olha-o profundamente.



Adé-Cunhatã
Quer ver parte dele que cunhatã defumou?
Antônio Maria
Sim.

        Adé-Cunhatã tira de seu manto de penas o pênis defumado do capitão Pedro Sá e exibe-o com prazer mórbido a Maria.

Antônio Maria
(Tocando o pênis defumado e beijando-o) Meu capitão... Quanta saudade de lhe sentir quente...
Adé-Cunhatã
Quer piroca defumada do seu capitão?
Antônio Maria
(Responde afirmativamente com a cabeça, suplicando-lhe por gestos para dar-lhe o pênis defumado do capitão) Deixa eu enterrar ele, por favor?!
Adé-Cunhatã
(Com malícia sensual) Onde?
Antônio Maria
Na terra...

Adé-Cunhatã
Toma! (Entrega-lhe sedutoramente o pênis defumado)

        Antônio Maria cai de joelhos e rapidamente, de quatro, começa a cavar um buraco na areia. Adé-Cunhatã aproveita-lhe a posição e desce-lhe as calças com vigor e cobre-o com seu corpo, penetrando-o violenta e surpreendentemente. Maria indiferente finaliza o enterro do pênis do capitão. Escurecimento. Um bando de araras sobrevoa a cena com gritos estridentes.



[1] Traje de vaqueiro.

EROTISMO E POLÍTICAS SEXISTAS


Já tive oportunidade de comentar minhas impressões do espetáculo que me pareceu a retomada do ativismo cênico atrevido de Guerreiro: Pólvora e Poesia.

Há uma problemática relacionada às complicadas inter-relações entre nudez, erotismo e pornografia que Pólvora e Poesia desafia ser equacionada ou abordada - seja pelo senso comum das cadeias de significação ou semblantes aos quais as pessoas se apegam em gôzo, seja pelo pensamento crítico que provoca arrepios glaciais por sua limpidez abstrata.

Trata-se da nudez despida de erotismo (nudez "naturista") –  da ausência de contágio afetivoconativo - no “voyerismo” das cenas que referem as práticas sexuais entre as personagens Rimbaud e Verlaine.

Para os que estão familiarizados com a visualização de registros audiovisuais da atividade libidinosa humana (heterossexual, bissexual, homossexual, bestial, onanista etc), facilmente encontrados em ambientes virtuais dedicados a conteúdos adultos que em geral são considerados ofensivos ao rigor moral de algumas convicções e crenças culturalmente absorvidas, há grande desconforto no fruir pelo modo como, cênicamente ,o sexo - sem ereção - entre machos é apresentado.

Guerreiro parece sugerir que o público experimente a desagradável sensação de ejacular sem prazer, presente na anorgasmia masculina – ou talvez tenha pretendido referir o recalcamento de paixões pela repressão culturalizada do “instinto sexual” - que dá origem à somatização de afasias, paralizias e outros  efeitos devastadores da histeria em mulheres e homens de acordo com as teses do freudismo.

Deparar-se com as cenas "de sexo" causa uma sensação semelhante ao “corte” do êxtase – aquilo que o consumismo compulsivo é incapaz de “substituir” com suas ofertas para sublimação do desejo à “baixo” custo; algo pelo qual, ao contrário, terminamos pagando muito caro: o mal-estar crônico das psicopatologias do cotidiano típicas da vida “civilizada”.
Não pretendo aqui “fazer a cabeça” de ninguém, apenas escrevo  como "descarrego " (alívio) de catexias (tensões causadas pelo excesso de energia represada) oriundas da fruição das cenas acima referidas.

Estas cenas, somadas ao modo desidratado (sépia) com que é apresentada a poesia vibrante e fortemente tingida pela paixão particularmente de Rimbaud, buscam sinalizar a náusea decorrente dos espancamentos em ataques homofóbicos e parecem sinalizar tenebrosamente o recrudescimento da intolerância às liberdades de ser, pensar e exercer a sexualidade neste país, como uma revoada sombria de corvos prenunciando o que já está a ocorrer, para o espanto dos que se encontram engajados na defesa dos direitos universais do ser humano - como é o caso, por exemplo, do recente “veto” presidencial ao “kit gay” sob a cínica argumentação de que trata-se de “propaganda de conduta inapropriada”; um escândalo sem precedentes que põe o Brasil em rota de colisão com os parâmetros educativos da UNESCO por ingerência “política” na organização educacional em razão de uma promíscua associação entre Estado e Cristianismo semelhante ao que se observa em parte do mundo islâmico obscurantista.

A tonalidade sépia de Pólvora e Poesia é profética neste sentido. Mas não suficiente para paralizar o desejo e o sonho dos que acreditam em um modelo menos opressor das singularidades – ânimo que sobrevive em brasas sob a montanha de cinzas dos escombros da Modernidade.


quarta-feira, 25 de maio de 2011

PÓLVORA E POESIA


Parece desnecessário acrescentar qualquer comentário à corajosa iniciativa de Fernando Guerreiro de colocar em cena o texto premiado pela Shell de Alcides Nogueira Pólvora e Poesia após o reconhecimento público da excelência do espetáculo – que conquistou os títulos de melhor espetáculo e direção sob iniciativa da Brasken Novas Formas de Ver o Mundo em 2010.



Mas senti-me no dever de trazer a público minha opinião, já que o empreendimento cênico sob liderança de Fernando se propõe instalar um círculo de discussão a respeito da intolerância à homoafetividade constatada em ações aterrorizantes de grupos homofóbicos amplamente noticiadas pelos telejornais em todo o Brasil a partir dos últimos meses do ano passado.

Guerreiro resgata sua vocação de encenador desassombrado e polêmico que havia sido obscurecida pelas injunções do mercantilismo cultural que busca, sem pudor, reduzir o Teatro e as Artes a frívolo divertimento, como ele mesmo afirma no programa do espetáculo: “espero continuar navegando nestes mares bravios... e me descobrir um artista que não tem medo do desconhecido.”

A coragem do criador cênico compara-se à dos grandes navegadores ibéricos que ousaram singrar oceanos em busca da descoberta e desbravamento de territórios ultramarinhos responsabilizando-se pela integridade física e ânimo de suas tripulações diante de intempéries imprevistas e possíveis ataques de piratas dos mares.

A competente direção do espetáculo é indiscutível e configura-se claramente como bússola do formato cênico descoberto em parceria com os atores e assessores audovisuais. Revela apurado cuidado na garantia de ritmo e harmonia aos desafios colocados com a transposição para o palco aberto do material dramático.

A atuação em palco aberto todavia necessita ser tecnicamente aprimorada por atores e diretores teatrais baianos e brasileiros. Mas isso é absolutamente perdoável por não existirem a rigor espaços físicos (edifícios teatrais) dedicados à experimentação e aprendizado de todas as suas exigências e possibilidades de configuração topológicovisuais.

O que se pode discutir é a concepção cênica do espetáculo, que distingue-se da direção. Na encenação encontra-se concretizada a mediação do encenador enquanto intérprete e organizador das vária s lexias enredadas na apresentação de sua provocação intencional objetivando reação estética por parte dos eventuais fruidores e apreciadores.

Não existem concepções estéticas melhores ou piores, elas são únicas, singulares, prerrogativas dos criadores cênicos corroboradas pelo elenco e apoio técnico.

A opção pela tonalidade sépia (luz, figurinos, adereços, dispositivos cênicos) parece sinalizar a desidratação da Poesia irisada de Verlaine, Rimbaud, Baudelaire e dos "malditos” da era pré-revolucionária, tingida pelas cores impressionistas, simbolistas, expressionistas e futuristas das vanguardas européias. Talvez se justifique por ser desejo da encenação ressaltar a cínica orquestação hegemônica da intolerância heteronormativa - que sufoca e empalidece as paixões “fora do armário.”




A violência da repressão aos desejos íntimos indomáveis fica evidente no agressivo dispositivo cênico manejado habilmente pelos atores e na nudez explícita despida de erotismo nas cenas “tórridas” belissimamente coreografadas por Hilda Nascimento.

A tonalidade sépia atua como uma espécie de “estranhamento” que obriga o espectador a afastar-se das suas representações colorizadas pelos solos em rock da guitarra de Beef que traduzem exemplarmente os efeitos surrealistas do absinto nas vivências poéticas arrebatadoras... Ocorre um choque de contrários que gera uma espécie de arrefecimento ou desempoderamento desconsertante das paixões sinalizando o desconforto de seu recalcamento.

O desbunde dionisíaco dos poetas loucos da vanguarda eropeia veste a máscara do trágico e exala um odor incômodo de pólvora molhada.

Parabéns Guerreiro e todos os enredados por Pólvora e Poesia!

TUMBEIRO MALÊ - A ILHA (11)


PARTE II – A ILHA
PRIMEIRA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

         Uma clareira delineada por uma paliçada de caniços encimados por crânios humanos, no centro a taba guarani forrada de areia branca em meio à mata atlântica fechada. Vê-se um toco de árvore à esquerda onde se encontra o Capitão Pedro Sá amarrado por cipós e o totem (imagem de São Sebastião) à direita, em ambas extremidades; Aos pés da imagem de São Sebastião - agora ressignificada com pintura negra sobre os olhos e uso de um esplendoroso pancô [1] de penas - encontra-se Adé-Cunhatã prostrado em grande concentração. Entre o toco e o totem, há um forno de lenha sob um tipo de quarador com varas de madeira entrelaçadas em cima do qual alguns peixes e caças estão sendo assadas. Algumas mulheres e crianças guarani abanam o fogo e fritam nele pequenos peixes espetados em flechas; outras ralam mandiocas. Os objetos frutos do saque estão ajuntados próximo ao forno e são inspecionados por guaranis curiosos. Ouve-se um cântico-dança ritual guarani[2] entoado por guerreiros guarani que se aproximam ritmadamente do totem aos pés do qual está Adé-Cunhatã adornado com um belíssimo manto de penas.[3]

Pajé Guarani
(Pedindo silêncio ao grupo através de gesto e dirigindo-se a Adé-Cunhatã) Já tem resposta de grande caçador?
Adé-Cunhatã
(Levanta-se e olha a todos. Sacode o corpo e toma postura de incorporação de caboclo) Caboclo quer fumar poró! [4]
Pajé Guarani
(Para alguns guerreiros) Traz poró pra Caboclo fumar!

Guerreiros obedecem ao pajé. O pajé passa o poró a Adé-Cunhatã que o fuma. O pajé sacode o maracá[5] ritmadamente. Adé-Cunhatã devolve o poró ao Pajé que o fuma e passa-o aos demais guerreiros.

Adé-Cunhatã
Caboclo quer otin´bebé Jurema!
Pajé Guarani
(Para guerreiros) Traz cabaça com otin´bebé Jurema pra caboclo! Traz rum também!

        Guerreiros trazem cabaça com beberragem para o Pajé que a repassa a Adé-Cunhatã e sorve avidamente o conteúdo de uma garrafa de rum. O caboclo bebe um pouco e devolve a cabaça ao cacique que também toma um gole e passa a cabaça aos demais guerreiros.

Pajé Guarani
Caboclo que rum?!

        Caboclo aceita rum. Toma um pouco e devolve a garrafa ao pajé.

Adé-Cunhatã
Caboclo quer dançar!

        A um sinal do Pajé guerreiros cantam e tocam tambores e fazem percussão com os pés. Os guaranis sorvem avidamente o rum. Adé-Cunhatã incorporando o Caboclo dança até pedir com gesto para suspender a música.

Adé-Cunhatã
Grande caçador quer que formiga decide se guarani come ou não capitão-do-mato! (Sacode o corpo deixando o transe)
Pajé-Guarani
(Sacudindo o maracá) O quê? O-kê?!
Adé-Cunhatã
Formiga decide!
Pajé-Guarani
(Para alguns guerreiros) Traz pote com formiga.

        Alguns guerreiros guarani trazem potes com as formigas. Adé-Cunhatã se refaz do transe e é auxiliado por algumas mulheres.

Pajé Guarani
(Para os guerreiros com os potes de formiga) Emborca pote e espera sinal de Pajé!

        O Pajé após a chegada do último pote ordena que desemborquem os potes com as formigas.

Pajé Guarani
(Para Guerreiros) Solta formiga!

        Pajé sacode o maracá e guerreiros soltam as formigas e as formigas aproximam-se assustadora e resolutamente do Capitão Pedro Sá cobrindo todo o seu corpo com picadas ao som dos gritos

desesperados e lancinantes de dor do capitão. Os guerreiros guarani gargalham sadicamente. Algumas crianças e mulheres se aproximam. O capitão Pedro Sá silencia por fim morto pelas picadas das formigas. As formigas deixam a cena.

Pajé Guarani
Formiga gosta de sangue de gringo! Guarani vai comer capitão-do-mato!

        Guerreiros gritam euforicamente celebrando a autorização para o rito antropófago.

Pajé Guarani
Guarani vai comer inimigo temperado com formiga!

        Gritos de euforia e excitação entre os guaranis. Uma roda é formada em torno ao corpo do capitão

Pajé Guarani
(Para guerreiros/axoguns) Traz tacape pra separar parte do corpo!



Trazem o tacape ao som de gritos de euforia. O corpo do capitão é esquartejado a tacape pelos guerreiros/axoguns. Soam maracás e tambores e uma ciranda macabra é dançada e cantada pelos guaranis em torno ao corpo que está sendo mutilado.

Pajé Guarani
(Entregando a cabeça do capitão para o cacique) Cabeça de gringo é pra cacique!
Cacique Guarani
(Para guerreiros/axoguns) Miolo é de cacique! Carcaça de cabeça coloca em vara na entrada de aldeia!
Pajé Guarani
(Exibindo o coração do capitão) Coração do inimigo é de pajé!
(Mostrando o pênis do capitão) Piroca de grigo é de Adé-Cunhatã!

        Risos das mulheres e das crianças. Adé-Cunhatã recebe com alegria o pênis do capitão.

Adé-Cunhatã
(Advertindo o Pajé com uma cabaça na mão) Sangue de gringo é pra oferenda a grande caçador!


Pajé Guarani
(Para Adé-Cunhatã) Leva sangue pra oferenda!

        Adé-Cunhatã coleta sangue do gringo em uma cabaça e o deposita aos pés da imagem de São Sebastião.

Pajé Guarani
(Para o restante da tribo) Todo o resto é de povo guarani!

        Tumulto e gritaria. Os guaranis avançam sobre os troços do corpo do capitão.

Primeiro guerreiro Guarani
Eu comer bunda do gringo!
Segundo guerreiro Guarani
Eu também querer bunda de inimigo!

        Lutam pela bunda do gringo até dividi-la avidamente rasgando-a em duas bandas.



Guerreiro Guarani/ancião
Eu quer ovo branco!

        Molequeira e alegria na repartição das partes do capitão entre o grupo. Pedaços do corpo do sacrificado são colocados sobre o quarador acima do fogo. Vê-se pernas, braços, pés, mãos, nariz, olhos sendo fritos para o consumo. Celebração da devoração com beberragem de Jurema e rum, através de cântico-dança/mística do grupo de atores durante a qual os objetos do saque são utilizados ludicamente por todos como em um carnaval. Espelhos, tecidos, penicos, chapéus, peças de roupa etc.[6]

Coro de Atores
(Cantam música Vamo Comer de Caetano Veloso & Tony Costa)

Vamo comer
vamo comer feijão
vamo comer
vamo comer farinha
se tiver
se não tiver então

ô ô ô ô
vamo comer
vamo comer faisão
vamo comer
vamo comer tempura
se tiver
se não tiver então
ô ô ô ô
eu não sou deputado baiano
e, como dizia o outro, não sou de reclamar
mas se estamos nesse cano
não consigo me calar
é um papo de pelicano romântico
aberto pro bico de quem alcançar
quem quiser ver
quem quiser ouvir
quem quiser falar
vamo comer, João
vamo comer
vamo comer, Maria

se tiver
se não tiver então
ô ô ô ô
vamo comer
vamo comer canção
vamo comer
vamo comer poesia
se tiver
se não tiver então
ô ô ô ô
O padre na televisão
Diz que é contra a legalização do aborto
e a favor da pena de morte
e disse: não! que pensamento torto!
e a pretexto de aids, aids
nunca se falou de sexo com tanta
franqueza e confiança
mas é bom saber o que dizer
e o que não dizer na frente das crianças
merci boaucoup

merci boaucoup, Bahia
arigatô
arigatô, Jamaica
e Trinidad
e Trinidad-Tobago
ô ô ô ô
´brigado Cuba
thank you Martinica
e Surinan
Belém do Grão-Pará
Y gracias, Puerto
gracias Puerto Rico
ô ô ô ô
baiano burro nasce, cresce
e nunca pára no sinal
e quem para e espera o’verde
é que é chamado de boçal
quando é que em vez de rico
ou mendigo ou polícia ou pivete
serei cidadão

e quem vai equacionar as pressões
do [MST], da UDR
e fazer dessa vergonha
uma nação
vamo comer
vamo comer [7]


        Os guerreiros guaranis e as crianças do sexo masculino deixam a cena em direção à oca dos homens. As índias e as crianças do sexo feminino despem, pintam e preparam a rainha imaculada para contrair casamento com o cacique guarani sob a supervisão de Adé-Cunhatã embaladas por cântico sagrado coletivo. As mulheres após ornamentarem a rainha negra imaculada, ainda cantando, dançam com ela uma ciranda de braços dados, no centro da taba, uma ao lado da outra. Vê-se agora o totem/imagem de São Sebastião com a base/peji enfeitado de flores e folhas de palmeira. Os guerreiros se aproximam após toque do sinete/adjá-maracá por Adé-Cunhatã.

Adé-Cunhatã
Virgem negra pronta pra cacique Matalauê.


Cacique Guarani
(Para aias da rainha negra imaculada) Leva ela para oca de cacique!

        Adé-Cunhatã sinaliza para as mulheres selvagens conduzirem a rainha negra até a oca do cacique fazendo soar o adjá. A rainha adentra a oca e as mulheres guaranis retornam ao centro da taba sorrindo tímida e faceiramente. O cacique entra na oca. Gritos festivos e toques de atabaques. Canto e dança de toda a tribo. Escuro.


[1]  Espécie de cocar grande que pode emoldourar os ombros e a cabeça do usuário. Consultar iconografia de Clovis Irigaray. Particularmente acrílico sobre tela de 1997 da coleção de Sami Kassab “São Sebastião” e acrílico sobre tela de 1996 homônimo de coleção particular. In: BERTOLOTO, José Serafim (2001) Clóvis Irigaray: arte – memória – corpo. Cuiabá, p. 23 e 27.
[2]  A festa Guarani ocorre de 6 a 9 de janeiro, todos os anos na sede do município de Itaparica. Há um documentário da TV Brasil intitulado “Os Guaranis” que fornece em parte informações sobre a mística guarani.
[3] Consultar imagens em museu de manto tupinambá adquirido por Maurício de Nassau levado para a europa.
[4] Cachimbo ainda hoje usado no cotidiano e em cerimônias do povo pataxó. Consultar BARON, Dan (2004) Alfabetização cultural: a luta íntima por uma nova humanidade. São Paulo: Alfarrabio, p. 293.
[5] Instumento musical feito com sementes dentro de uma cabaça e um cabo de madeira. Consultar BARON, Dan (2004) Alfabetização cultural: a luta íntima por uma nova humanidade. São Paulo: Alfarrabio, p. 311.
[6] Tomar como referência coreográfica os “ritos de passagem” das místicas do Teatro de Rua de Amir Haddad.
[7] CAETANO VELOSO (S/D) “Vamo Comer” . In: Caetano (CD) . Polygram/Philips, faixa 6.