O próximo texto dramático a ser veiculado por OBSERVE será
ANTILEXtranz de Ricardo Ottoni
PALAVRAS, PALAVRAS, PALAVRAS...
Sobre Antilextranz
Pode parecer estranho e deselegante falar sobre o próprio processo criador, algo incômodo - porque pode ser tomado por falta de modéstia ou arrogância estética.
O temor da opinião dos outros tem poder de paralizar e até calar a expressão deste Outro que também sou em mim. Mas, como um cão danado rosnando errático, quero falar para eu mesmo sendo Outro de mim.
Depois do frêmito criador movido pela Sombra, que anima os processos de transposição dos afetos em palavras, imagens e demais meios de expressão; de todo o movimento que busca aliviar a catexia para que haja escape da intensidade da energia psíquica - nem sempre consciente - ocorre a sensação de alívio pela purgação, pela desobstrução do que está represado.
Dá-se então o espanto adiado pelo estranhamento dos resultados do sopro involuntário da criação; o deparar-se com a presença do desconhecido em mim que é Outro. Isso vai solicitar a reconstrução do que foi estilhaçado desvelando o que se encontra recalcado, encoberto por signos com o trabalho criador. Inicia-se uma busca incansável por vestígios do que não pode ser totalmente explicado pela ação da consciência.
No estranhamento do que foi criado há uma espécie de apelo introspeccionista, consciente, para apercepção ou reflexão durante e após as ações praticadas sob influência da Sombra em mim e conseqüentemente a apreciação estética do que foi executado pelo Outro que sou.
Um evento traumático envolvendo o comércio do túmulo onde jazia um ente querido e a descoberta desta ação sem que houvesse o meu consentimento nem o de outros muito próximos da pessoa falecida é o que acredito tenha desencadeado a necessidade de recorrer ao Mito Antígona - por identificação com o caráter ao qual se submete esta personagem trágica. Mas devem existir outros motivos ocultos e inconfessáveis para deflagração do processo de aproximação do Trágico.
Nas tragédias clássicas a rigor não importam os sentimentos nem a vida pessoal das personagens. Seu princípio é o Mito, o que não pode ser totalmente explicado, o mistério: a tragédia da condição humana. É o Mito que põe em movimento os caracteres.
O caráter de Antígona é tudo o que revela o sentido das ações desta personagem: sua DECISÃO. Uma decisão que a leva a ser antagonista do seu tutor. Opondo-se ao protagonismo das ações do tutor, Antígona é movida pelo desejo de preservar suas tradições culturais e práticas religiosas invocando em socorro do seu agir o direito de exercê-las pela crença absoluta em rígidas obrigações morais e no dever de providenciar os ritos fúnebres dos irmãos mortos um ao outro em combate fratricida. No percurso do transe que a levará da infelicidade à felicidade paradoxalmente desencadea seu contrário. Um movimento de duplo sentido numa mesma direção que causa espanto, medo, terror e piedade a todos que assistem ao pathos e a vivência de suas ações movidas simultaneamente contra o tio e contra si mesma pela Sombra.
Não por acaso optei por recontar o Mito Antígona atribuindo-lhe um “terceiro sexo.” A condição ambígua dos seres andróginos me pareceu sedimentar as contradições presentes na ousada determinação da personagem em optar simultaneamente pela invaginação e recusa do falo masculino. Na condição de “castrado” o príncipe eunuco Antilex frustra o ímpeto invasivo do seu tio e reitor Caprus Creonte recusando a expansão do imperialismo fálico tebano do qual é também legítimo representante.
As razões que levam Antígona a atuar do modo como se apresenta na argumentação do Mito é um enigma; é a Sombra que põe em ação todos os enigmas porque constitui o Mistério inaugural e absoluto. Aí está a universalidade da TRAGÉDIA: o fundamento místico da vida de todos os seres animados.
Comecei a pensar sobre o apelo que o Mito Antígona exerceu em todos que ousaram recontá-lo ao longo dos séculos através da escrita dramática fixando-o na memória cultural da humanidade, fora e dentro de todos: Sófocles, Brecht, Anouille... Mas não esqueci da narrativa de anônimos contadores que investiram e permanecem investindo na oralidade para a revivescência dos Mitos, daquilo que não pode ser totalmente explicado pela Razão.
Aproveitando os registros iconográficos de informações visuais e escritas do que chegou até a contemporaneidade sobre as práticas do teatro trágico clássico, ousei imaginar como seria a recontação deste Mito aproveitando a estrutura dramática da tragédia grega. Uma liberdade que me permiti pela inexistência de registros áudio-visuais de como eram os espetáculos nos antigos teatros gregos e romanos dos quais, hoje, só restam ruínas.
O que se diz ou se pode saber sobre a espetacularidade cênica clássica é especulação: fruto da imaginação; ou da reconstrução de uma prática que não foi efetivamente vivenciada por ninguém exceto pelos autores dos escritos sobre a atividade artístico-cultural do Estado na antiguidade.
Aproveitando a oportunidade que o silêncio e o “apagão” a respeito das práticas cênicas da antiguidade oferece à imaginação recriadora e também encorajado pela ousadia de Shakespeare, que recontou e criou argumentos trágicos rompendo radicalmente com a indefectível estrutura da dramaturgia clássica prescrita por Aristóteles em sua Poética, senti-me no direito de apresentar o Mito Antígona tentando resgatar o conhecimento sobre a cena na antiguidade – que, de algum modo sobrevive ainda em práticas teatrais de atores e famílias de gente de teatro que há muitas gerações vêm se dedicando a manter vivo modos tradicionais de atuação e de uso do palco clássico. Saberes práticos e “técnicos” a respeito da estética cênica que influenciam ainda manuais e recomendações para encenação em palcos “italianos” desenvolvidos a partir do formato original do edifício teatral grecoromano.
A não encenação de um texto dramático abre espaço para o trabalho (re)criador não só por parte do público afeiçoado pela literatura dramática mas também de todo pessoal eventualmente enredado em empreendimentos teatrais, de artistas cênicos profissionais, amadores e técnicos de palco.
O argumento do Mito conforme é contado em ANTILEXtranz poderia sem dificuldade ser decalcado sobre uma disputa por território entre facções rivais de traficantes pelo poder nos “morros” cariocas, por exemplo. As possibilidades que se abrem com a encenação de um texto dramático são muitas.
Hoje, confesso, por estar em tratamento médico, ter receio de empreender esforços para a encenação de textos dramáticos em razão de estes solicitarem o emprego de grande energia física e encontros presenciais que podem por em risco minha integridade orgânica já abalada há algum tempo por uma imunodepressão crônica.
Evitar grande concentração de pessoas nas minhas atuais condições de saúde é uma recomendação médica que auxilia na terapêutica a que tenho sido submetido - por me poupar o enfrentamento de situações eventualmente hostis ao meu organismo.
A impressão que tenho hoje é a de uma ausência de disposição das pessoas em geral para pensar sem pressa e desapaixonadamente sua vida social através das Artes e de um recrudescimento da intolerância para com a liberdade de expressão através das diferentes formas da comunicação estética.
Muitos acreditam que a representação cênica de um assassinato, estupro ou abuso sexual e de drogas exorta as pessoas à essas práticas condenáveis. Insistem em não aceitar que as relações entre as Artes e a Realidade Social são complexas, que a existência do signo artístico difere da existência da vida dos seres animados através dele apresentados e re(a)presentados.
Optam deliberadamente por desconhecer os fundamentos estéticos da atividade artística não por falta de instrução mas por se sentirem ameaçados pelo o que os objetos artísticos podem revelar sobre o íntimo da natureza humana, por provocarem seu questionamento, por tudo o que pode ser revelado ou ocultado a respeito de todos e cada um de nós.
Sinto haver grande receio das pessoas em se ocuparem de pensar a tragédia do viver humano em um mundo onde não há alternativa possível ao consumo voraz. Mas deve haver outros modos de escapar desse estado de coisas que não seja o humor imbecilizado ou a fuga eufórica e desesperada pela vertigem do prazer fulgaz e da alegria passageira alucinógena. Na tentativa de evitar a contemplação de nossos horrores mais íntimos, quebrar o “espelho” da vida social não será suficiente jamais para apagar a imagem terrível e repugnante dos modos mais abjetos do ser humano quando estes são despudoradamente abordados pelo discurso da comunicação estética através de enunciados complexos que podem provocar Sombra sobre toda objetividade cientificista que se pretende conhecimento a respeito das “leis” que regulam o “sucesso” no mercado das Artes
Sem pretender nada mais além do que exercer o direito inalienável de inserir-me nos movimentos dialógicos subjacente à curadoria educativa em Artes Cênicas apresento-lhes sem receio o Mito Antígona como me foi autorizado contá-lo em nome da Sombra.
Não temamos os espasmos causados pelo pânico do silêncio sobre a escuridão gerados pela Tragédia.
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