domingo, 9 de janeiro de 2011

ISABEL (4)

        Escuro lento ao som do volume crescente do Ijexá de Oxum.


SEGUNDA PARTE
SEGUNDA REGÊNCIA (1876-1877)
O Gabinete Caxias

        Luz sobre a sala da casa de Don’Ana mãe maior. Don’Ana ocupada com a limpeza do altar dedicado a Nª Srª da Boa Morte. Ouve-se palmas anunciando a chegada de alguém.

Emissário do Tigre [Fora de cena]
Ô de casa! (Bate palmas) Don’Ana! Don’Ana!
Mãe Maior
Vai ver quem é Pequena!
Mãe Pequena
Já vai!

        Pequena dirige-se até a porta e volta em seguida. Don’Ana se compõe.


Mãe Pequena
Don’Ana, tem um home aí querendo falar com a senhora
Mãe Maior
Quem é?
Mãe Pequena
Disse ser da parte de um tal de Trigue, sei lá...
Mãe Maior
Tigre! Deixe passar.
Emissário
(Respeitoso) Don’Ana! Sua benção! Motumbá?!
Mãe Maior
MotumbAxé! Quer água filho?
Emissário
Não. Obrigado.
Mãe Maior
O Tigre veio com você?
Emissário
Não. Ficou no Rio. A coisa tá pegando fogo por lá... A Princesa assumiu novamente a Regência do Império... Mas dizem que só fica até o final do ano. Os conservadores a temem por ela simpatizar com os abolicionistas... Os conservadores exigem uma regulamentação da Lei do Ventre Livre mantendo os libertos sob a tutela dos senhores até a maioridade legal!
Mãe Maior
Na prática, continuam escravizados...
Emissário
Sim. A luta continua. E é por isso que estou aqui. Para lhe repassar uma soma destinada a alforria de mulheres negras preferentemente grávidas... O Tigre pensa em fundar uma Confederação Abolicionista que congregará as Irmandades comprometidas com a compra de cartas de alforria e publicações antiescravistas.
Mãe Maior
Isso é muito bom. A contribuição vem em boa hora. Pode-se saber o nome do benemérito?
Emissário
Só posso revelar que a soma é fruto da venda de uma jóia doada por uma senhora importante da Corte.
Mãe Maior
Muito elegante mas também prudente ela não querer ser identificada...
Emissário
Existem muitos opositores ao abolicionismo. Ela teme ser posta no índex dos ultraconservadores... (Passando-lhe uma pequena bolsa de couro com moedas) Aqui está a vultosa quantia oriunda da venda de um conjunto de adornos femininos em ouro, brilhantes e esmeraldas que pertenceu à benemérita.
Mãe Maior
Que Nossa Senhora da Boa Morte a proteja e a guarde dos opositores ao abolicionismo. Rezaremos por ela e por todos os que contribuem com o nosso propósito!
Emissário
A abolição do escravismo neste país é o sonho de muitos.
Mãe Maior
A luta continua! Venceremos com fé em nossa grande Maria mãe de Deus! Nossa Senhora da Boa Morte...
Emissário
A Imperatriz Regente sancionou recentemente a naturalização de estrangeiros e apóia abertamente o regime de trabalho assalariado... A abolição coloca-se como uma exigência dos novos modos de organização da vida econômica mundial, mas enfrenta resistência de muitos senhores de engenho, fazendeiros e cafeicultores do sul e sudeste... Além disso, muitos negros estão se rebelando e fugindo das grandes propriedades para viverem em quilombos seguindo o exemplo de Zumbi dos Palmares...
Mãe Maior
Não podemos desistir de perseguir nossos sonhos de justiça social... No momento, o que nossa Irmandade pode fazer é alforriar o maior número possível de mulheres - para que seus filhos nasçam livres, sem ter que permanecer sob a tutela dos senhores até os vinte e um anos.
Emissário
Preciso ir agora Don’Ana! Tenho que repassar fundos para outras agremiações abolicionistas...
Mãe Maior
Que São Jorge lhe guie e proteja filho!
Emissário
Sua Benção!
Mãe Maior
Que Nossa Senhora da Boa Morte lhe abençoe! E também à doadora da jóia... a dona das esmeraldas... ofertadas para a remissão dos negros...
Emissário
Adeus.
Mãe Maior
(Acompanhando-o até a porta) Vai com Deus, filho!
Emissário
Fica com Ele!

        Escuro. Ouve-se o aguerê de Oxossi. Luz sobre o coro de caifazes.

Antônio Bento e [parte] do Coro de caifazes
(Entoando em jogral o poema Bandido Negro de Castro Alves)
Trema a terra de susto aterrada...
Minha égua veloz, desgrenhada,
Negra, escuras nas lapas voou.
Trema o céu... Ó ruína! Ó desgraça!
Porque o negro bandido é quem passa,
Porque o negro bandido bradou:
        Cai, orvalho de sangue do escravo,
        Cai, orvalho, na face do algoz.
        Cresce, cresce, seara vermelha,
        Cresce, cresce, vingança feroz
Dorme o raio na negra tormenta...
Somos negros... o raio fermenta
Nesses peitos cobertos de horror.
Lança o grito da livre coorte,
Lança, ó vento, pampeiro de morte,
Este guante de férreo ao senhor
Cai, orvalho de sangue do escravo,
        Cai, orvalho, na face do algoz.
        Cresce, cresce, seara vermelha,
        Cresce, cresce, vingança feroz
[...] Somos nós, meu senhor, mas não temas.
Nós quebramos as nossas algemas
Pra pedir-te as esposas ou mães.
Este é o filho do ancião que mataste.
Este – irmão da mulher que manchaste...
Oh! Não tremas, senhor, são teus cães.
Cai, orvalho de sangue do escravo,
        Cai, orvalho, na face do algoz.
        Cresce, cresce, seara vermelha,
        Cresce, cresce, vingança feroz
São teus cães, que têm frio e têm fome.
Que há dez séculos a sede consome...
Quero um vasto banquete feroz...
Venha o manto que os ombros nos cubra.
Pura vós fez-se a púrpura rubra.
Fez-se o manto de sangue pra nós. [...]
Cai, orvalho de sangue do escravo,
        Cai, orvalho, na face do algoz.
        Cresce, cresce, seara vermelha,
        Cresce, cresce, vingança feroz

        Escuro e, em seguida, luz noturna sobre taba da aldeia Aymoré. Vê-se tribalistas ao redor de uma fogueira cantando e dançando. Ouve-se Baridjumorkô.[1]

Caboclo Manuel Galdino
Pajé vai chamá Caboclo Boto pra dizer se nós já pode ir pra Jabaquara...
Antônio Bento
Meus homens estão impacientes...
Caboclo Manuel Galdino
Caboclo Boto é dono das mata. Ele decide por onde e quando nós vai. Espera. Confia em Caboclo!

         Ouve-se gritos e apitos estridentes. Soam maracás e pisadas ritmadas dos tribalistas em círculo sobre o chão em dança ritual. Tribo entoa canto-chamada do Caboclo Boto ao sinal do Pajé Aymoré.

Pajé Aymoré
(Puxando a cantiga) Ô boa noite, venha ligeiro, ver a chegada do Caboclo-Boto!
Tribalistas Aymorés, Coro de Caifazes, Antônio Bento e Caboclo Manuel Galdino
(batendo palmas) Ô boa noite, venha ligeiro, ver a chegada do Caboclo-Boto!




 
        Batuque e apitos. O Caboclo-Boto surge de uma oca sob um manto de palhas secas de bananeira que lhe cobre todo o corpo. Dança investindo seu arco e flecha na direção de todos os segmentos do circulo formado pelos tribalistas.


[1] Música original do povo Kayapó do A-Ukre, interpretado pelo povo da aldeia In NASCIMENTO, Milton (s/d) TXAI CD-Áudio/Faixa 15. Aliança dos Povos da Floresta-UNI-CNS-Columbia.

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