segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

ISABEL (3)

Escuro lento. Clarão. Escuro rápido. Ouve-se trecho majestoso contínuo logo após a abertura da ópera O Guarani de Carlos Gomes.

        Luz na Senzala da Fazenda Barro Vermelho. A jovem mucama Dandara visita sua mãe e outras negras durante preparo da refeição dos trabalhadores escravos.

Maria Judite
(Acariciando-lhe o ventre) A barriga já tá aparecendo, fia... Pelo jeito do seu umbigo deve de ser menino homem
Dandara
Será?
Maria Judite
O sangue de Tôin Bento é forte! Né atoa que ele foi escolhido reprodutor dos escravos da Barro Vermelho...
Dandara
(Baixo) Ele me chamou pra fugir com ele pra o Quilombo de Jabaquara...
Maria Judite
E tu vai? De barriga? Esse tal quilombo não fica pros lado da Corte?
Dandara
É... Fica escondido nas matas à sudoeste das terras que são propriedade da família da Marquesa de Santos.
Maria Judite
Vixe! É longe demais... Capaz do menino nascer no meio da estrada... Tu já tá quase na hora de parir...
Dandara
Por isso vim me aconselhar com a senhora, mãe...
Maria Judite
Vai não fia! Fica pra ter o menino aqui no conforto da casa grande... Tú é mucama querida de Sinhá Barbina...
Dandara
Dona Bárbara disse que a criança vai nascer livre, por causa da Lei do Ventre Livre assinada pela Princesa Leopoldina!
Maria Judite
E é mulé que tá sentada no trono do Império?
Dandara
A filha do Imperador Dom Pedro II - que assumiu a coroa mediante licença do pai... Princesa Regente Imperial Isabel Cristina Leopoldina de Bragança.
Maria Judite
E deixaro mermo uma mulé mandar no Brasil?
Dandara
Dizem que ela será a sucessora de Dom Pedro II, a nova Imperatriz do Brasil...
Maria Judite
E os dono de terra vai aceitar ser comandado por um Imperador de saia? Tu acha mermo que essa tal lei vai ser cumprida?
Dandara
Pelo menos o Barão de São Félix disse que a Barro Vermelho vai respeitar o decreto da Princesa – foi o que me garantiu Dona Bárbara...
Maria Judite
Então... Mais um motivo pra parir aqui!
Dandara
É que a Zumira...
Maria Judite
O que Zurmira tem a ver com teu fio?
Dandara
Ela anda dizendo que vai fugir com Antônio Bento pro Quilombo de Jabaquara; que vai lutar ao lado dele; que vai ser a mulher dele...
Maria Judite
Deixa Zurmira ir!... Tu tá de barriga, fia... Teu fio vai nascer livre! Faz isso por ele... Tôin é pai de muita criança já nascida aqui e acolá. Ele né home de uma mulé só! Tu sabe disso...
Dandara
Sei... Mas eu amo ele.
Maria Judite
Ama mais do que esse menino que tu tá carregando aí dentro?

        Escuro rápido. Ouve-se toques do Ijexá de Oxum.

        Nos campos de plantação da Fazenda do Barro Vermelho Antônio Bento e outros homens negros trabalham na colheita das folhas de fumo. São surpreendidos pela chegada rumorosa de Zeza, moleque de recados do Barão do fumo de São Félix.

Zeza
(Desesperado) Tôin! Tôin! Mataro Pai Joaquim! Mataro!

        Agitação dos negros [caifazes] que se aglomeram em volta de Antônio Bento e Zeza.

Antônio Bento
Mataram?! Como? Quando?

Zeza
(Ofegante) No tronco... De chicote...

        Revolta e indignação dos negros.

Antônio Bento
Por que levaram ele pro tronco?
Zeza
Ouviro falar do levante e da fuga pro quilombo... Queriam que ele dissesse quem estava de cabeça no movimento, que entregasse os irmão... Levaro ele pro tronco e judiaram do véi até ele morrer, mas Pai Joaquim num falô nada... Preferiu morrer a ter que abrir a boca... Morreu sem sequer dar um grito de dor...
Coro de caifazes [negros escravos rebelados]
(Recitam em jogral o poema A cruz na estrada de Castro Alves)
Caminheiro que passas pela estrada,
Seguindo pelo rumo do sertão,
Quando vires a cruz abandonada,
Deixa-a em paz dormir na solidão.
        Que vale o ramo do alecrim cheiroso
        Que lhe atiras nos braços ao passar?
        Vais espantar o bando buliçoso
        Das borboletas, que lá vão pousar.
É de um escravo humilde sepultura,
Foi-lhe a vida o velar de insônia atroz.
Deixa-o dormir no leito de verdura,
Que o Senhor dentre as selvas lhe compôs.
        Não precisa de ti. O gaturamo
        Geme, por ele, à tarde, no sertão.
        E a juriti, do taquaral no ramo,
        Povoa, soluçando, a solidão.
Dentre os braços da cruz, a parasita,
Num abraço de flores, se prendeu.
Chora orvalhos a grama, que palpita;
Lhe acende o vaga-lume o facho seu.
        Quando, à noite, o silêncio habita as matas,
        A sepultura fala a sós com Deus.
        Prende-se a voz na boca das cascatas,
        E as asas de ouro aos astros lá nos céus.
Caminheiro! Do escravo desgraçado
O sono agora mesmo começou!
Não lhe toques no leito de noivado,
Há pouco a liberdade o desposou.
Antônio Bento
Temos que apressar os acontecimentos e precipitar nossa fuga! A pretexto de velar e enterrar Pai Joaquim vamos deixar a lida na plantação e nos embrenhar no mato ao cair da noite. Um grupo segue em cortejo para o velório do Pai Joaquim e outro vem comigo pra senzala ajuntar comida e água pra nossa caminhada rumo à terra prometida. (Para Zeza) Zeza, pega o cavalo e vai correndo até a aldeia dos Aymorés que fica lá pros lado do Rio Uma; avisa o Caboclo Manuel Galdino que nós tamo indo. O combinado é de ele ser nosso guia pelas mata até o Quilombo de Jabaquara. Eu vou pegar Dandara e Zumira que ficaro de ir com os fugidos.

        Zeza sai apressado. Antônio Bento organiza os homens em dois grupos. Ouve-se o alujá de Xangô.

Luz sobre a sala da casa de Don’Ana mãe maior. Ela e mãe pequena conversam enquanto retiram seus ornamentos e objetos utilizados na procissão.

Mãe Maior
Quanto a Irmandade arrecadou na procissão de hoje?
Mãe Pequena
Muito pouco Don’Ana... Setecentos.     
Mãe Maior
De grão em grão a galinha enche o papo... Num é assim?
Mãe Pequena
É o que diz a Lei da Natureza... (Pausa) Quanto falta pra comprar a liberdade da princesa de Ruanda?
Mãe Maior
Quatro mil e trezentos!
Mãe Pequena
Onde ela tá?
Mãe Maior
Minha sobrinha tá na Barro Vermelho. É mucama de companhia da mulher do Barão do Fumo de São Félix... Os cauri disseram que ela deve ser a minha sucessora.
Mãe Pequena
Tem de ser ela?
Mãe Maior
Não sou eu quem escolhe a zeladora do culto, Pequena...


Na senzala da Barro Vermelho. Antônio Bento inquieto aguarda a chegada de Dandara.


Zumira
Tú vai mermo levá ela?
Antônio Bento
Se ela quiser, vai com a gente
Zumira
Mesmo de bucho cheio?
Antônio Bento
Quero meu filho perto de mim... Nunca vi a cara de nenhum filho meu.
Zumira
Queria poder te dar um filho...
Antônio Bento
Mas tu não pode. Tem o ventre seco!
Zumira
Num precisa jogar isso na minha cara!
Antônio Bento
(Aflito) Dandara tá demorano muito!
Zumira
Mulé de barriga é assim: tudo devagar... E tu ainda quer levar esta “mala” sem alça com a gente...
Antônio Bento
Pára de falar criatura!
Zumira
(Fazendo-lhe um carinho) Tu precisa dela pra que?

        Antônio Bento rechaça seu gesto de carinho.

Zumira
(Despeitada) Tu não me tem na hora que quiser? Pra que levar ela?
Antônio Bento
Fecha a matraca mulé!
Zumira
(Sedutora) Vai, fecha logo minha boca com aquele seu beijo gostoso...

        Antônio Bento beija-a voluptuosamente aprisionando-a com agressividade viril em seus braços. Volta a ouvir-se o alujá de Xangô. Dandara chega surpreendendo-os.

Dandara
Tôin...
Antônio Bento
(Afastando Zumira) Minha Princesa... Achei que não vinha mais...
Dandara
Vim só me despedir...
Antônio Bento
(Decepcionado) Cê num vai?
Zumira
(Exultante e agradecida dirigindo-se aos céus) Obrigada meu Pai! Kaô! Kaôkabiezile! Kaaô!
Dandara
Vou atrapalhar a viagem de vocês... Num quero ser um estorvo.
Antônio Bento
Num vou ver a cara do meu filho?
Dandara
Não diga isso... Vou estar aqui te esperando. (Entregando-lhe uma trouxa com mantimentos) Trouxe isso pra viagem de vocês, farinha com carne seca frita.

        Antônio Bento recebe o alimento e passa-o para Zumira. Em seguida beija longa e ternamente Dandara. Ouve-se agora o Ijexá de Oxum.


Zumira
(Enciumada retira-se) Vamo logo com isso Bento! Num temo tempo a perder...

        Escuro lento ao som do volume crescente do Ijexá de Oxum.

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