terça-feira, 31 de maio de 2011

TUMBEIRO MALÊ - a ilha (13)


Um bando de araras sobrevoa a cena com gritos estridentes.

QUARTA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

A luz volta a incidir sobre a cena onde estão, agora, Antônio Maria e Adé-Cunhatã treinando o uso do archote a beira mar. Os arqueiros e lanceiros tupis-cariris e pataxós saem da água e despedem-se de Maria e Adé-Cunhatã. Adé-Cunhatã está sem o manto, desnudo. Com a saída dos tupis-cariris e pataxós Antônio Maria o envolve por trás, a pretexto de demonstrar-lhe como segurar adequadamente o cabo do archote.

Antônio Maria
Isso... (Sussurando-lhe ao ouvido) Assim mesmo cunhatã... Relaxe, você consegue!

       
Adé-Cunhatã faz estalar o chicote na areia seguidas vezes ofegantemente até apoiar-se exausto no tórax de Antônio Maria inclinando a cabeça para cima ao expirar aliviado como em um gozo espermático.

Adé-Cunhatã
(Ofegante) Consegui! Consegui...

        Maria beija-lhe carinhosamente o pescoço.

Antônio Maria
Sim. Você está pronto agora.

        Maria sai de trás de Adé-Cunhatã e tira a roupa.

Antônio Maria
Vem! Vamos na água? (Sai correndo em direção à praia jogando as calças para o alto) Vem! Vem! Vamos!

        Adé-Cunhatã sai em disparada a seu encontro gargalhando de felicidade. Toque de agogôs e percussão alegre. Escuro.


Luz. Aos pés da imagem de São Sebastião Antônio Maria está desnudo sendo depilado por Adé-Cunhatã e pinta os olhos com carvão resgatando sua maquiagem original, desta vez mais forte, para cerimônia de fechamento do corpo aos pés da imagem do Grande Caçador. Os tupis-cariris e pataxós se pintam uns aos outros.

Adé-Cunhatã
Caboclo fechar corpo de Maria pra não morrer furo de flecha...
Antônio Maria
(Finalizando a maquiagem à frente de um caco de espelho) Sabe a história do representado nesta imagem?
Adé-Cunhatã
Sei que totem é bom pra curar ferida de flecha.
Antônio Maria
Como sabe disso?
Adé-Cunhatã
Caboclo me disse...
Antônio Maria
(Retirando os brincos de prata e substituindo-os por penas brancas e pretas de gavião dos tupis-cariris atravessando os furos das orelhas) Disse?
Adé-Cunhatã
Sonhei ele.
Antônio Maria
O nome do representado é Sebastião, São Sebastião. Foi curado milagrosamente após ter tido o corpo crivado de setas...
Adé-Cunhatã
Eu pede totem proteger você de flechada no mata-maroto...
Antônio Maria
Acredito no poder de São Sebastião!
Adé-Cunhatã
Agora Maria é guerreiro guarani pronto pra “travessar” mar...
Antônio Maria
(Entregando-lhe o par de brincos de prata) Fica com eles para lembrar de mim!

        Adé-Cunhatã sorri.

Escuro.

Maria está pintado e maquiado como um guerreiro tupi-cariri e encontra-se só, olhando o horizonte. Está com o seu chapéu de

pluma nas mãos e usa suas rotas botas. Ouve-se um longínquo toque lamentoso de berimbau.

Antônio Maria
(Com olhos marejados) Galego... Galego... Onde você está? Onde? Será que ainda brilham seus olhinhos de esmeralda? (Recita Vinícius de Moraes) [1]


Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.



Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim muito e amiúde,
É que um dia teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

        Escuro. O berimbau segue soando cada vez mais distante.


QUINTA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

         Ruído de ondas espraiando-se na areia. Na beira do mar, à noite, tudo está pronto para o embarque de Antônio Maria e a travessia dos velocistas pataxós e tupis-cariris a nado até Salvador. Adé-Cunhatã com o manto de penas sacode o maracá e dá baforadas do poró sobre os nadadores pronunciando palavras mágicas. Os velocistas fazem aquecimento para a largada. Cada guerreiro pataxó e tupi leva um archote enrolado no pescoço como se fosse um colar. Antônio Maria está de pé à frente da canoa. Usa lenço amarrado na cabeça, embaixo do chapéu, e está calçado com suas botas embora use tanga selvagem de penas. Um guerreiro guarani na popa da

embarcação afasta a canoa da praia impulsionando-a com o remo. Um canto de coruja corta o silêncio noturno. Adé-Cunhatã permanece em pé à beira mar vendo a canoa partir. Maria faz o pelo-sinal.

Antônio Maria
Valei-me Nossa Senhora da Boa Esperança! Valei-me São Sebastião!

Escuro. Pio renitente da coruja.



[1] MORAES, Vinicius (2003) “Soneto do amor total” In: Nova antologia poética, São Paulo:Schwartz, p.174.

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