quarta-feira, 18 de maio de 2011

TUMBEIRO MALÊ - O MAR ( 8)


QUINTA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

        Noite. O negro malê atendido por Antônio Maria retorna à galé devorando um naco de pão.

Primeiro Escarvo/Guerreiro Malê
O que ele queria?
Segundo Escravo/Guerreiro Malê
(Dando ao companheiro o restante do pão) Cumprir o oficio de enrabadiço.
Primeiro Escravo/Guerreiro Malê
Indagou alguma coisa sobre a nossa missão?
Segundo Escravo/Guerreiro Malê
Não. Nada. Me deu rum. Banhou-me. Praticou sexo oral e anal comigo. Me deu boa comida.
Primeiro Escravo/Guerreiro Malê
O próximo serei eu?
Segundo Escravo/Guerreiro Malê
Estava mesmo precisando despejar a porra acumulada do saco. O contra-almirante é profissional: agüenta bem a pressão. (Risos contidos) Usou tripa de porco para vestir meu cacete antes de me deixar penetrar-lhe o traseiro. Vexame: quase não coube...
Primeiro Escravo/ Guerreiro Malê
Incomoda?! (Segundo escravo franze a testa) A tripa de porco?
Segundo Escravo/ Guerreiro Malê
Não. Só dificulta um pouco o gozo... Ficou muito apertada!
Primeiro Escravo/ Guerreiro Malê
Será que ele vai me atender hoje ainda? Acabei ficando excitado com o seu relato.
Segundo Escravo/ Guerreiro Malê
Penso que não. O contra-almirante deve estar com o rabo esfolado da surra de cacete que eu dei nele.

        Risos contidos. Escuro. Foco sobre o capitão Pedro Sá só na proa observando as estrelas. Antônio Maria aproxima-se.

Antônio Maria
O que está observando capitão?
Capitão Pedro Sá
A Cruzeiro do Sul. Veja: Ali!
Antônio Maria
Já estamos próximos à costa brasileira então...
Capitão Pedro Sá
Falta pouco agora... Em breve avistaremos terra. (Pausa) Estamos preparados para as tempestades tropicais? Elas costumam ocorre nesta época do ano no atlântico sul.
Antônio Maria
A tripulação já foi alertada desta possibilidade.
Capitão Pedro Sá
Cuide para que os passageiros e as peças também sejam alertadas sobre os procedimentos de segurança a serem observados durante uma eventual tormenta...
Antônio Maria
Já fiz isso.
Capitão Pedro Sá
É certeza enfrentarmos tormenta daqui para a frente. Lembre-se que temos de fazer uma parada na Baía de Todos os Santos para entrega da peças malês e dos alabês angolanos antes de seguirmos para o  io de Janeiro. Teremos assim tempo e condições para corrigir possíveis avarias na nave após vencermos as tempestades.
Antônio Maria
Sim.
Capitão Pedro Sá
A flâmula auriverde continua tremulando no mastro principal? (Maria responde afirmativamente com a cabeça) Creio que os conflitos entre o exército português e as tropas independentistas brasileiras já devam ter sido resolvidos favoravelmente ao Império do Brasil. O governo do imperador recrutou mercenários para combater a resistência portuguesa na Cisplatina, Piauí, Maranhão, Grão-Pará e Bahia.
Antônio Maria
Tem certeza do desfecho favorável aos brasileiros?
Capitão Pedro Sá
Certeza, não. Mas quem tem os serviços do Lobo do Mar a seu favor certamente sairá vencedor.
Antônio Maria
O Lobo do Mar está a serviço de D. Pedro I?
Capitão Pedro Sá
Disso não tenho dúvida. Fui informado que Lorde Cochrane foi feito Marquês do Maranhão pelo Imperador! (Pausa) É... Depois de servir a   Napoleão o sagaz Lobo escocês migrou para a América contratado a peso de ouro.
Antônio Maria
Temos mesmo que adentrar a baía de Todos os Santos? E se a Província da Bahia ainda estiver em poder dos portugueses?
Capitão Pedro Sá
Temos que correr o risco. É preciso honrar o compromisso de entregar os guerreiros malês e os alabês angolanos em Salvador – isso nos renderá uma boa quantia.
Antônio Maria
São guerreiros – os malês?
Capitão Pedro Sá
Sim. Guerrilheiros que servirão a um levante Malê que está sendo orquestrado, em grande sigilo, na capital da província. Mas ninguém mais pode saber. Nenhum outro negro deve saber. A alimentação deles deve continuar sendo reforçada e diferenciada da dos outros. Pagaram caro pelos dois. E também pelo nosso silêncio.

        O capitão e Antônio Maria permanecem calados olhando o horizonte. Som de ondas chocando-se ao casco da embarcação.

Capitão Pedro Sá
(Recita Fernando Pessoa)
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
Eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo comigo
Que tem uma criança, se ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...[1]

        Soa forte o trovão. Relampeja. Uma onda mais forte balança a embarcação.

Antônio Maria
Está começando... (Faz prece a à Senhora das tempestades) [2]

Senhora das tempestades e dos mistérios originais
Quando tu chegas, a terra treme do lado esquerdo
Trazes a assombração
As conjunções fatais

E as vozes negras da noite
Senhora do meu espanto e do meu medo
Senhora das marés vivas e das praias batidas pelo vento
Senhora do vento norte com teu manto de sal e espuma
Há uma lua do avesso quando tu chegas
Há um poema escrito em página nenhuma
Quando caminhas sobre as águas
Senhora dos sete mares
Conjugação de fogo e luz
E no entanto eclipse

Trazes a linha magnética da minha vida
Senhora da minha morte
Quando tu chegas, começa a música...

      Ouve-se o sinete soando na camarinha das negras. Os atabaques dos alabês angolanos começam a soar em crescendo o alujá de Xangô.

Senhora dos cabelos de alga
Onde se escondem as divindades

Trazes o mar, a chuva, as procelas
Batem as sílabas da noite
Batem os sons, os signos, os sinais
E és tu a voz que dita
Trazes a festa e a despedida
Senhora dos instantes com tua rosa dos ventos
E teu cruzeiro do sul
Senhora dos navegantes
Com teu astrolábio e tua errância
Tudo em ti é partida
Tudo em ti é distância
Tudo em ti é retorno
Senhora do vento
Com teu cavalo cor de acaso
Teu chicote, tua ternura
Sobre a tristeza e a agonia
Galopas no meu sangue com teu cateter chamado
Pégasso
Senhora dos teoremas e dos relâmpagos marinhos
Senhora das tempestades e dos líquidos caminhos

Quando tu chegas, dançam as divindades
Tudo em ti é uma alquimia
Tudo em ti é milagre
Senhora da energia...

Capitão Pedro Sá
Sim. É ela.

Se a ciência quer ser verdadeira,
Que ciência mais verdadeira que a das coisas sem ciência? [3]
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber vê quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa. [4]
Mas as cousas não têm nome nem personalidade;
Existem, e o céu é grande e a terra larga,
E o nosso coração do tamanho de um punho fechado...

Bendito seja eu por tudo quanto não sei.
É isso tudo que verdadeiramente sou.
Gozo tudo isso como quem sabe que há o sol. [5]

(Dirigindo-se ao tombadilho) Vamos! Maria, toque o gongo. Acorde todos! Recolha as velas, acione os remos...

        Antônio Maria faz soar o gongo. Movimentação a bordo. Escurecimento lento ao som do alujá de Xangô. Soam novos trovões. Relampeja. Os remos são movimentados a partir da galé.


SEXTA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

         Amanhecer. Marujos mijam no mar. Conversas animadas sobre o enfrentamento da tormenta.

Capitão Pedro Sá
Já contabilizou os prejuízos?
Antônio Maria
Um mastro rompido, algumas velas rasgadas... Perdemos dois botes salva-vidas. Só nos resta um, com capacidade para três passageiros e um marinheiro.
Capitão Pedro Sá
Nem tudo está perdido. Falta pouco para atracarmos no porto da barra – local recomendado para o desembarque dos malês e dos alabês angolanos. Vê?! (Passando-lhe a luneta) Já se avista a exuberante mata atlântica brasileira. Como estão os passageiros?
Antônio Maria
Dormindo após a noite em vigília por causa da tormenta.
Capitão Pedro Sá
É justo que os marujos descanssem. Os negros da galé também. Vou me deitar e tentar dormir um pouco. Acha que está em condições de guardar sentinela?
Antônio Maria
Quando o senhor levantar, descanço eu.

        O capitão Pedro Sá se retira para seu camarote. Um marujo permanece em pé aparentemente ainda urinando. Antônio Maria aproxima-se dele.

Antônio Maria
Ainda não acabou com isso, Galego?
Marujo Manuel Galego
Olha só o meu estado...
Antônio Maria

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