Já afirmamos que o novo equacionamento do problema da psicologia da atuação deve ser entendido como uma questão da psicologia concreta. Neste caso o pesquisador adotará como guia ao contrário de uma lei eterna e imutável, de natureza biológica, para explicar as emoções do atuante na performance teatral, as leis históricas que colocam em movimento os diferentes modelos e sistemas que regulam a atuação cênica no Teatro.
Percebe-se na confrontação ingênua do PARADOXO DO ATOR de Diderot a tentativa infrutífera de muitas abordagens psicológicas para resolverem o problema da atuação teatral baseadas em fundamentos absolutos sem levar em consideração as formas e os aspectos históricos concretos do Teatro, resultando todas portanto em considerações débeis
A única solução para o pardoxo do ator de Diderot, o pressuposto fundamental de qualquer abordagem à problemática da performance teatral, é o de que a psicologia da atuação está interconectada com a ideologia social de sua época, e que por isso está sujeita a mudanças assim como as formas exteriores da representação teatral, seus estilos de atuação e seus conteúdos através dos tempos. A psicologia da atuação formulada por Stanislavskii difere da psicologia da performance da época de Sófocles na mesma extensão em que um edifício teatral dos dias de hoje se diferencia de um anfiteatro grego.
A psicologia da atuação teatral é uma categoria histórica e de classe, não uma categoria biológica! Esta é única tese que exprime a concepção central da nova abordagem que é apresentada aqui e que solicita um outro tipo de equacionamento do problema.
Nesta abordagem entende-se que não é apenas a regularidade biológica que determina definitivamente o caráter das emoções na atuação teatral. Mas, ao contrário, que as emoções constituem apenas uma parte da complexa ATIVIDADE psíquica envolvida na criação artística cênica; que a psicologia da atuação teatral cumpre também uma função social, de classe, historicamente situada; que reflete o espírito coletivo de uma época, de uma classe.
Por conseguinte, as leis que regulam as paixões, as leis da reflexologia [1] e do entrelaçamento dos sentimentos na atuação teatral de um papel com os sentimentos da vida real do atuante só podem ser explicadas e compreendidas a partir da psicologia histórico-cultural da atividade/CHAT [2] e não por uma psicologia naturalística ou de natureza exclusivamente biológica.
Só desse modo é possível explicar, para além do ponto de vista da regularidade biológica do psiquismo, a emergência desta ou daquela forma histórica de atuação teatral.[3]
Não é a natureza real das paixões humanas que determina a emoção do atuante na performance teatral. A expressão cênica das emoções na atuação teatral revela um modo diferente de sentir as paixões que pode dar origem a muitas formas ou possibilidades para sua representação artística.
Paralelamente ao reconhecimento da natureza histórica do problema chega-se à conclusão de que nos deparamos frente a uma questão que se apresenta sobre um duplo aspecto quando pressupomos a sociologia nos estudos teatrais.
Em primeiro lugar, como em qualquer ocorrência do fenômeno psicológico, a psicologia da atuação insere-se na realidade sociopsicológica, e deve ser estudada e mapeada levando-se em conta a complexa totalidade do meio no qual se encontra encrustrada e jamais de modo isolado ou de(s)contextualizadamente.
Será necessário descobrir sua função numa época determinada e numa classe determinada para que seja revelada a extensão e intensidade da influência da atuação teatral sobre seus espectadores e, a seguir, seja constatada a sua natureza social nas formas teatrais que assume - em cujo âmbito o sentimento estético só então poderá ser concretamente explicado.
Em segundo lugar, reconhecido o caráter histórico do problema, será preciso, ao tratarmos da atuação teatral, começarmos a levar em conta não tanto os aspectos psicológicos pessoais do atuante mas sobretudo os aspectos psicossociais que influenciam a forma da sua atuação. As emoções do atuante portanto não devem ser compreedidas e expressas a partir dos sentimentos do sujeito, do “eu” mas dos sentimentos do coletivo, do “nós”. O atuante a rigor (re)cria ao atuar um sentimento, uma sensação, uma emoção de modo impessoal, porque representa os afetos conhecidos e compartilhados pelos seus observadores.
Antes de ocorrer uma “encarnação” por parte do atuante (de sensações, sentimentos e emoções) a atuação teatral assemelha-se mais a um tipo singular de “texto” que recorre à expressão cênica (verbal e não-verbal) para alcançar e elevar a consciência social.
A nostalgia do texto dramático As Três Irmâs de Tchekov (re)criado no palco pelos atuantes do Teatro de Arte de Moscou contagiou todos os observadores porque era a formulação cênica de todo um estado de ânimo de um amplo círculo social, que se reconhecia nela representado e conscientizava-se de si e para si ampliando o seu autoconhecimento através da atuação teatral e expressividade artística durante a vivência estética que lhe era proporcionada por este tipo singular de atividade do psiquismo humano.
À luz deste entendimento se torna claro o controle que deve ter o atuante sobre sua própria atuação. Mas apenas isso tem um valor limitado. Os depoimentos do atuante sobre as suas sensações durante a representação teatral, dados de sua auto-observação, não perdem totalmente o valor nem a enorme importância que possuem para o conhecimento a respeito da performance teatral, porém deixam de ser a única fonte universal para o entendimento do problema.
Os relatos introspeccionistas demonstram como o atuante se conscientiza de suas próprias emoções, e de como estes depoimentos se configuram interconectados com traços de sua personalidade, mas não dão conta de explicar a atuação teatral plenamente. Eles são apenas parte dos fatos e iluminam precariamente a realidade das ocorrências: limitam-se a serem especulações que se encontram apenas no nível da autoconsciência do atuante.
Para que seja possível extrair algum valor científico de tudo isso nós precisamos compreender o que a atuação teatral é em si mesma. Devemos entender que a psicologia da performance está interconectada com o ambiente sociohistórico. Só assim se tornará nítido o que realmente representam estes relatos de vivência na/da atuação teatral e revelados os conteúdos culturais que perpassam a performance cênica do atuante - que são transmitidos e compartilhados com os observadores de sua atividade.
[1] A reflexologia é uma escola russa de neurofisiologia que investiga a atividade nervosa superior do ser humano e dos animais que foi liderada por Pavlov e deu origem ao behaveourismo norteamericano de Thorndike, Watson e Skinner.
[2] Hoje a psicologia sociohistórica formulada de modo inaugural por Vigotskii é consignada psicologia histórico-cultural da atividade/CHAT [Cultural Hiistorical Activity Theory] após as contribuições posteriores de Luria e Leontiev, seus discípulos e orientandos que a expandiram e ampliaram.
[3] A formação de sentimentos na performance teatral tem fundamento anímico conforme explicado por Vigotskii ao expor a Lei da Dupla Expressão dos Sentimentos e a Lei da Realidade dos Sentimentos no capítulo nono de sua Psicologia das Artes na qual apresenta a especificidade piscológica da reação estética: “há muito tempo os teóricos vêm distinguindo a reação estética...da reação comum no ato da percepção de um gosto, um cheiro ou uma cor agradáveis.” Consultar VYGOTSKY, L. S. (1998) Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, Cap. 9, p. 249-272, p.249.
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