Parece desnecessário acrescentar qualquer comentário à corajosa iniciativa de Fernando Guerreiro de colocar em cena o texto premiado pela Shell de Alcides Nogueira Pólvora e Poesia após o reconhecimento público da excelência do espetáculo – que conquistou os títulos de melhor espetáculo e direção sob iniciativa da Brasken Novas Formas de Ver o Mundo em 2010.
Guerreiro resgata sua vocação de encenador desassombrado e polêmico que havia sido obscurecida pelas injunções do mercantilismo cultural que busca, sem pudor, reduzir o Teatro e as Artes a frívolo divertimento, como ele mesmo afirma no programa do espetáculo: “espero continuar navegando nestes mares bravios... e me descobrir um artista que não tem medo do desconhecido.”
A coragem do criador cênico compara-se à dos grandes navegadores ibéricos que ousaram singrar oceanos em busca da descoberta e desbravamento de territórios ultramarinhos responsabilizando-se pela integridade física e ânimo de suas tripulações diante de intempéries imprevistas e possíveis ataques de piratas dos mares.
A competente direção do espetáculo é indiscutível e configura-se claramente como bússola do formato cênico descoberto em parceria com os atores e assessores audovisuais. Revela apurado cuidado na garantia de ritmo e harmonia aos desafios colocados com a transposição para o palco aberto do material dramático.
A atuação em palco aberto todavia necessita ser tecnicamente aprimorada por atores e diretores teatrais baianos e brasileiros. Mas isso é absolutamente perdoável por não existirem a rigor espaços físicos (edifícios teatrais) dedicados à experimentação e aprendizado de todas as suas exigências e possibilidades de configuração topológicovisuais.
O que se pode discutir é a concepção cênica do espetáculo, que distingue-se da direção. Na encenação encontra-se concretizada a mediação do encenador enquanto intérprete e organizador das vária s lexias enredadas na apresentação de sua provocação intencional objetivando reação estética por parte dos eventuais fruidores e apreciadores.
Não existem concepções estéticas melhores ou piores, elas são únicas, singulares, prerrogativas dos criadores cênicos corroboradas pelo elenco e apoio técnico.
A opção pela tonalidade sépia (luz, figurinos, adereços, dispositivos cênicos) parece sinalizar a desidratação da Poesia irisada de Verlaine, Rimbaud, Baudelaire e dos "malditos” da era pré-revolucionária, tingida pelas cores impressionistas, simbolistas, expressionistas e futuristas das vanguardas européias. Talvez se justifique por ser desejo da encenação ressaltar a cínica orquestação hegemônica da intolerância heteronormativa - que sufoca e empalidece as paixões “fora do armário.”
A violência da repressão aos desejos íntimos indomáveis fica evidente no agressivo dispositivo cênico manejado habilmente pelos atores e na nudez explícita despida de erotismo nas cenas “tórridas” belissimamente coreografadas por Hilda Nascimento.
A tonalidade sépia atua como uma espécie de “estranhamento” que obriga o espectador a afastar-se das suas representações colorizadas pelos solos em rock da guitarra de Beef que traduzem exemplarmente os efeitos surrealistas do absinto nas vivências poéticas arrebatadoras... Ocorre um choque de contrários que gera uma espécie de arrefecimento ou desempoderamento desconsertante das paixões sinalizando o desconforto de seu recalcamento.
O desbunde dionisíaco dos poetas loucos da vanguarda eropeia veste a máscara do trágico e exala um odor incômodo de pólvora molhada.
Parabéns Guerreiro e todos os enredados por Pólvora e Poesia!
Nenhum comentário:
Postar um comentário