Já tive oportunidade de comentar minhas impressões do espetáculo que me pareceu a retomada do ativismo cênico atrevido de Guerreiro: Pólvora e Poesia.
Há uma problemática relacionada às complicadas inter-relações entre nudez, erotismo e pornografia que Pólvora e Poesia desafia ser equacionada ou abordada - seja pelo senso comum das cadeias de significação ou semblantes aos quais as pessoas se apegam em gôzo, seja pelo pensamento crítico que provoca arrepios glaciais por sua limpidez abstrata.
Trata-se da nudez despida de erotismo (nudez "naturista") – da ausência de contágio afetivoconativo - no “voyerismo” das cenas que referem as práticas sexuais entre as personagens Rimbaud e Verlaine.
Para os que estão familiarizados com a visualização de registros audiovisuais da atividade libidinosa humana (heterossexual, bissexual, homossexual, bestial, onanista etc), facilmente encontrados em ambientes virtuais dedicados a conteúdos adultos que em geral são considerados ofensivos ao rigor moral de algumas convicções e crenças culturalmente absorvidas, há grande desconforto no fruir pelo modo como, cênicamente ,o sexo - sem ereção - entre machos é apresentado.
Guerreiro parece sugerir que o público experimente a desagradável sensação de ejacular sem prazer, presente na anorgasmia masculina – ou talvez tenha pretendido referir o recalcamento de paixões pela repressão culturalizada do “instinto sexual” - que dá origem à somatização de afasias, paralizias e outros efeitos devastadores da histeria em mulheres e homens de acordo com as teses do freudismo.
Deparar-se com as cenas "de sexo" causa uma sensação semelhante ao “corte” do êxtase – aquilo que o consumismo compulsivo é incapaz de “substituir” com suas ofertas para sublimação do desejo à “baixo” custo; algo pelo qual, ao contrário, terminamos pagando muito caro: o mal-estar crônico das psicopatologias do cotidiano típicas da vida “civilizada”.
Não pretendo aqui “fazer a cabeça” de ninguém, apenas escrevo como "descarrego " (alívio) de catexias (tensões causadas pelo excesso de energia represada) oriundas da fruição das cenas acima referidas.
Estas cenas, somadas ao modo desidratado (sépia) com que é apresentada a poesia vibrante e fortemente tingida pela paixão particularmente de Rimbaud, buscam sinalizar a náusea decorrente dos espancamentos em ataques homofóbicos e parecem sinalizar tenebrosamente o recrudescimento da intolerância às liberdades de ser, pensar e exercer a sexualidade neste país, como uma revoada sombria de corvos prenunciando o que já está a ocorrer, para o espanto dos que se encontram engajados na defesa dos direitos universais do ser humano - como é o caso, por exemplo, do recente “veto” presidencial ao “kit gay” sob a cínica argumentação de que trata-se de “propaganda de conduta inapropriada”; um escândalo sem precedentes que põe o Brasil em rota de colisão com os parâmetros educativos da UNESCO por ingerência “política” na organização educacional em razão de uma promíscua associação entre Estado e Cristianismo semelhante ao que se observa em parte do mundo islâmico obscurantista.
A tonalidade sépia de Pólvora e Poesia é profética neste sentido. Mas não suficiente para paralizar o desejo e o sonho dos que acreditam em um modelo menos opressor das singularidades – ânimo que sobrevive em brasas sob a montanha de cinzas dos escombros da Modernidade.
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