domingo, 8 de maio de 2011

PSICOLOGIA DA ATUAÇÃO TEATRAL ( 7)


Não se deve esquecer que as emoções expressas pelo atuante enquanto atividade artística vão além da sua personalidade e são parte do diálogo que se estabelece entre os atuantes e seus observadores.
Essa interação entre atuantes e observadores da/na atuação teatral, que repercutem nos enunciados cênicos a que Paulhan brilhantemente denominou de “trasformação social do sentimento.” Esses novos sentidos colaborados da/na representação teatral só podem ser verdadeiramente compreendidos quando a atuação se insere em um amplo campo semiótico de natureza sociopsicológica do qual são parte integrante. 
Deste ponto de vista não é possível desconectar o conteúdo concreto (real) da atuação do que é constituído pelos conteúdos do papel performado, dos interesses pessoais de uma personagem, do seu significado e relevância sociopsicológicos, da sua função estética ou artísticocultural.

Agora chegamos no ponto nodal da questão, que em razão de não se tornar suficientemente claro para alguns, há dado origem, a nosso ver, a toda uma série de equívocos no entendimento do problema que interessa aqui: a atuação teatral.

Por exemplo, a postura crítica ou distanciamento/estranhamento em relação ao papel atuado difere radicalmente da insistência do atuante na defesa da existência “mágica” ou “ilusionista” para além da criação artística do papel durante o desempenho de sua atuação ou performance. [1]

Muitos dos que têm se dedicado a compreender o Sistema de Stanislavskii, têm confundido os seus fundamentos psicológicos com os efeitos estilísticos naturalistas a que um determinado tipo de atuação busca alcançar. Em outros termos: têm confundido o Sistema de Stanislavskii com sua prática de encenação e atuação teatral.

É verdade que qualquer prática teatral constitui a expressão concreta de um determinado sistema de atuação, mas isso não é suficiente para iluminar o problema da psicologia da performance. Não exaure todo o seu real sentido e significados, que se encontram muito além da sua expressão cênica. A expressão estética (dos sentidos, da sensibilidade) em si mesma não será suficiente para explicar a complexidade e ampllitude deste fenômeno da atividade psíquica tipicamente humana, ela precisa converter-se em expressão artística.[2]

Um passo em direção ao encontro do real entendimento da natureza da atuação teatral foi dado por Vakhtangov [3] como pode ser demonstado em sua primorosa encenação de Turandot, de Gozzi. [4]

Ao pretender neste espetáculo uma atuação teatral que não se limitasse apenas à ilustração do conteúdo da trama, mas questioná-la [a trama] ou desafiá-la recorrendo à ironia, ao riso crítico sobre o seu conteúdo “trágico” Vakhtangov cria verdadeiramente um NOVO CONTEÚDO para este clássico do Teatro.

Conta-se que já no primeiro encontro com os atuantes para o ensaio da peça, VaKhtangov propôs o seguinte desafio: que os atuantes buscassem performar os papéis da trama como se fossem cômicos “grotescos” ou “italianos” (que o espetáculo tivesse o tom das representações dos atuantes na tradição da Commedia d’ellArte).[5]

Ele pediu, por exemplo, a atuante que iria performar o papel de Adelma que falasse o texto não como se fosse a pessoa Adelma, mas como uma comediante “grotesca” a performar aquele papel. Ele sugeriu que ela agisse como se sua performance ocorresse sendo ela mulher do diretor do espetáculo e amante do atuante que performava o protagonista, que estivesse usando calçados bem maiores que seus pés e caminhasse de modo rumoroso e espalhafatoso pelo palco. Já para a atuante que iria performar Zelima pediu-lhe que agisse também de modo “grotesco” e que tivesse preguiça de atuar o seu papel e que isso fosse revelado despudoradamente aos observadores de sua performance através de escancarados bocejos...

Percebe-se claramente que VaKhtangov (re)cria e transforma intencionalmente o conteúdo da ópera, ressignificando-o com a forma cênica (corporal) com que ele [o conteúdo] é apresentado aos observadores amparado na atuação teatral típica da Commedia Del’Arte mas, de modo semelhante como ocorre no Sistema de Stanislavskii, trazendo para a atuação teatral a verdade do sentimento, com base em justificativas interiores para a forma cênica.[6]

A “verdade interior”, disse Zachava[7], prerrequisito fundamental para a atuação no Sistema de atuação formulado por Stanislavskii é a mesma no modo de atuar proposto por VaKhtangov. Embora o conteúdo dos sentimentos dos atuantes sejam diferentes, a verdade com que eles são expressos é a mesma porque, em ambos casos, uma “verdade interior” coloca em movimento a genuína criação artística concretizada em formas exteriores que não são coincidentes.

Demonstra-se como a “verdade interior” do Sistema de Stanislavskii, e o naturalismo dos sentimentos que ele apregoa se põe a serviço de um objetivo estilístico completamente oposto, o que revela que o  Sistema não pode se limitar a um único uso concreto ou aplicado apenas a determinado modo de atuação teatral. [8]

Isso quer dizer que o sentido da performance teatral para o atuante não pode se limitar à generalização de suas únicas vivências estéticas mas que o seu significado muda quando se leva em consideração que nem todos os conteúdos da atuação resumem-se às emoções particulares de quem as performa e que este tipo de explicação generalizante para a atuação teatral – como “encarnação” mágica de uma personagem - não consegue atingir o verdadeiro caráter ou a natureza artística em si da performance teatral.

Significa dizer que o autêntico e genuíno paradoxo da atuação teatral não tem sido suficientemente explorado por toda uma série de investigações do problema. A verdadeira compreensão da questão não pode se resumir às vivências emocionais do atuante todo o tempo mas deve ir além de seus limites, distanciar-se delas ao menos um instante, estranhá-la.

O mesmo ocorre quando nos deparamos com a psicologia da atuação. Se antes a emoção do atuante durante a atuação teatral era vista como sendo algo fechado sobre si mesmo, um mundo que existe por si só, agora sabe-se quais as leis que regulam esta complexa atividade do psiquismo humano, através de análises criteriosas de sua composição, da descrição escrupulosa das formas cênicas e estéticas que ela assume.

Isto é, as emoções na atuação teatral são uma vivência afetiva estética, criada artificialmente, ou seja ARTÍSTICAMENTE, distinguindo-se das vivências afetivas reais, não podendo ser desconectadas do contexto em que ocorre a sua criação ou construção.

Nós reafirmamos que só é possível solucionar o problema da atuação teatral sem renunciar ao exame do momento e das circunstâncias em que ela ocorre, que é fundamental para sua correta interpretação e entendimento.


[1] Como muito bem assinala Arlete Cavalieri ao discutir a poética cênica de Meyehold, encenador russo que influenciou fortemente a cena russa pré e pós-revolucionária e o contexto sociohistórico no qual Vigotskii insere seu pensamento sobre a atuação teatral: “A aproximação com o conceito brechtiano do ‘distanciamento’ (o efeito Verfemdung) não é casual. Também aqui a técnica da deformação joga em cena... tática brechtiana frente ao espectador tornando-lhe estranho o que é habitual...Victor Chklóvski, um dos mais significativos representantes do grupa da OPOIZ (Sociedade Para o Estudo da Linguagem Poética)... já havia descrito seu conceito do ‘efeito de estanheza’(ostaniênie) [estranhamento] como o fundamento da percepção artística na necessidade de desautomatização da linguagem pelo introdução de algo estranho e inusitado... A poética cênica meyeholdiana, contrária ao postulado naturalista, baseia-se no critério da não coinscidência entre o significado e a coisa representada, o que implica basicamente uma poética anti-aristotélica, contrária à identificação do espectador com a cena e dirigida, isto sim, a um distanciamento reflexivo que permita fomentar o enriquecimento da própria sensibilidade e da consciência crítica e estéticaConsultar CAVALIERI, Arlete (1996) O inspetor geral de Gógol/Meyehold. São Paulo: Perspectiva, p. 131-132. [Negritos meus]
[2] Aqui é importante chamar a atenção do leitor para como o estético (a sensibilidade) se diferencia do artístico (da forma de expressão da sensibilidade do criador). O estético está contido no artístico já o inverso concretiza-se através de uma relação cultural mais complexa: a “reação estética” em que a forma de expressão do criador e da criação artística afeta a sensibilidade do fruidor e apreciador de um modo “indireto”, isto é, mediado pela cultura entre ambos.
[3] Ievguêni Bogratiónovictch Vakhtangov ator e encenador russo (1883-1922) formado pela Escola de Stanislavskii.
[4] Espetáculo baseado na ópera A Princesa Turandot de Carlo Gozzi encenado em 1922. Um detalhado relato inclusive incluíndo imagens do espetáculo encenado sob a coordenação de Vakhtangov - que veio a falecer poucos dias após a estréia - encontra-se em RIPELINNO, Angelo Maria (1996) Retrato de um Diretor-Hamlet In: O truque e a alma. S. Paulo: Perspectiva, Cap. 4, p. 191-250. Ali também encontram-se fragmentos de comentários elogiosos de Stanislavskii à montagem capitaneada por Vakhtangov.
[5] Vakhtangov, tendo sido prosélito e membro da “assembleia de crentes na religião de Stanislavskii” nas palavras de Mikhail Tchekov, migrou para o campo magnético da “meyerholdia” como afirma Ripellino: “Tendo partido das praias do naturalismo, Vakhtangov havia chegado a um teatro... alheio a intenções éticas e reprodutivas, que confiava na própria magia” RIPELINNO, Angelo Maria (1996) já citado na p. 225.
[6] Embora não se tenha conhecimento da existência de registros do espetáculo encenado por Vakhtangov “em movimento”, através do documentário cinematográfico de suas aparesentações ou dos seus ensaios (making off), Ripellino descreve as ações cênicas nos auxiliando a ter uma idéia da forma artística das atuações teatrais nesta peça: “Ao sinal... os intérpretes precipitavam-se a apanhar os retalhos, para redeominhá-los como girândolas. Depois, presto prestíssimo [rapidíssimo], em ritmo de dança, maquiavam-se à vista do público e colocavam sobre os vestidos de gala aqueles fragmentos de tecidos berrantes, transformando-se nas personagens de Gozzi. O esvoaçar de tantos tecidos enchia o espaço cênico de volúveis composições coloridas, com efeitos de caleidoscópio, fazendo do espetáculo uma ‘balada de trapos’” p. 215 na obra já referenciada.
[7] ZAKHAVA, Bóris (1933) Vakhtangov i ievó Studia [Vakhtangov e seu Estúdio].Moscou.
[8] O próprio Vakhtangov, discípulo de Stanislavskii, teria escrito em seu diário ainda segundo RIPELLINO também na página 225 que “Todos os naturalistas se parecem: pode-se tomar a encenação de um pela de outro... Eu sei que a história vai elevar Meyerhold acima de Stanislavskii, porque Stanislavskii deu duas décadas de teatro à sociedade russa (e ainda por cima somente a uma parte dela: burguesia e intelligentsia) enquanto Meyerhold lançou as raízes dos teatros do futuro...Ele [Stanislavskii] aburguesou o Teatro... tirando toda espécie de teatralidade. Era preciso não tirar, e sim enobrecer, transformar o teatralismo mesquinho dos seus dias [os dias de Syanislavskii] no sublime e autêntico teatralismo dos dias de viço do Teatro.”

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