PARTE II – A ILHA
PRIMEIRA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS
Uma clareira delineada por uma paliçada de caniços encimados por crânios humanos, no centro a taba guarani forrada de areia branca em meio à mata atlântica fechada. Vê-se um toco de árvore à esquerda onde se encontra o Capitão Pedro Sá amarrado por cipós e o totem (imagem de São Sebastião) à direita, em ambas extremidades; Aos pés da imagem de São Sebastião - agora ressignificada com pintura negra sobre os olhos e uso de um esplendoroso pancô [1] de penas - encontra-se Adé-Cunhatã prostrado em grande concentração. Entre o toco e o totem, há um forno de lenha sob um tipo de quarador com varas de madeira entrelaçadas em cima do qual alguns peixes e caças estão sendo assadas. Algumas mulheres e crianças guarani abanam o fogo e fritam nele pequenos peixes espetados em flechas; outras ralam mandiocas. Os objetos frutos do saque estão ajuntados próximo ao forno e são inspecionados por guaranis curiosos. Ouve-se um cântico-dança ritual guarani[2] entoado por guerreiros guarani que se aproximam ritmadamente do totem aos pés do qual está Adé-Cunhatã adornado com um belíssimo manto de penas.[3]
Pajé Guarani
(Pedindo silêncio ao grupo através de gesto e dirigindo-se a Adé-Cunhatã) Já tem resposta de grande caçador?
Adé-Cunhatã
(Levanta-se e olha a todos. Sacode o corpo e toma postura de incorporação de caboclo) Caboclo quer fumar poró! [4]
Pajé Guarani
(Para alguns guerreiros) Traz poró pra Caboclo fumar!
Guerreiros obedecem ao pajé. O pajé passa o poró a Adé-Cunhatã que o fuma. O pajé sacode o maracá[5] ritmadamente. Adé-Cunhatã devolve o poró ao Pajé que o fuma e passa-o aos demais guerreiros.
Adé-Cunhatã
Caboclo quer otin´bebé Jurema!
Pajé Guarani
(Para guerreiros) Traz cabaça com otin´bebé Jurema pra caboclo! Traz rum também!
Guerreiros trazem cabaça com beberragem para o Pajé que a repassa a Adé-Cunhatã e sorve avidamente o conteúdo de uma garrafa de rum. O caboclo bebe um pouco e devolve a cabaça ao cacique que também toma um gole e passa a cabaça aos demais guerreiros.
Pajé Guarani
Caboclo que rum?!
Caboclo aceita rum. Toma um pouco e devolve a garrafa ao pajé.
Adé-Cunhatã
Caboclo quer dançar!
A um sinal do Pajé guerreiros cantam e tocam tambores e fazem percussão com os pés. Os guaranis sorvem avidamente o rum. Adé-Cunhatã incorporando o Caboclo dança até pedir com gesto para suspender a música.
Adé-Cunhatã
Grande caçador quer que formiga decide se guarani come ou não capitão-do-mato! (Sacode o corpo deixando o transe)
Pajé-Guarani
(Sacudindo o maracá) O quê? O-kê?!
Adé-Cunhatã
Formiga decide!
Pajé-Guarani
(Para alguns guerreiros) Traz pote com formiga.
Alguns guerreiros guarani trazem potes com as formigas. Adé-Cunhatã se refaz do transe e é auxiliado por algumas mulheres.
Pajé Guarani
(Para os guerreiros com os potes de formiga) Emborca pote e espera sinal de Pajé!
O Pajé após a chegada do último pote ordena que desemborquem os potes com as formigas.
Pajé Guarani
(Para Guerreiros) Solta formiga!
Pajé sacode o maracá e guerreiros soltam as formigas e as formigas aproximam-se assustadora e resolutamente do Capitão Pedro Sá cobrindo todo o seu corpo com picadas ao som dos gritos
desesperados e lancinantes de dor do capitão. Os guerreiros guarani gargalham sadicamente. Algumas crianças e mulheres se aproximam. O capitão Pedro Sá silencia por fim morto pelas picadas das formigas. As formigas deixam a cena.
Pajé Guarani
Formiga gosta de sangue de gringo! Guarani vai comer capitão-do-mato!
Guerreiros gritam euforicamente celebrando a autorização para o rito antropófago.
Pajé Guarani
Guarani vai comer inimigo temperado com formiga!
Gritos de euforia e excitação entre os guaranis. Uma roda é formada em torno ao corpo do capitão
Pajé Guarani
(Para guerreiros/axoguns) Traz tacape pra separar parte do corpo!
Trazem o tacape ao som de gritos de euforia. O corpo do capitão é esquartejado a tacape pelos guerreiros/axoguns. Soam maracás e tambores e uma ciranda macabra é dançada e cantada pelos guaranis em torno ao corpo que está sendo mutilado.
Pajé Guarani
(Entregando a cabeça do capitão para o cacique) Cabeça de gringo é pra cacique!
Cacique Guarani
(Para guerreiros/axoguns) Miolo é de cacique! Carcaça de cabeça coloca em vara na entrada de aldeia!
Pajé Guarani
(Exibindo o coração do capitão) Coração do inimigo é de pajé!
(Mostrando o pênis do capitão) Piroca de grigo é de Adé-Cunhatã!
Risos das mulheres e das crianças. Adé-Cunhatã recebe com alegria o pênis do capitão.
Adé-Cunhatã
(Advertindo o Pajé com uma cabaça na mão) Sangue de gringo é pra oferenda a grande caçador!
Pajé Guarani
(Para Adé-Cunhatã) Leva sangue pra oferenda!
Adé-Cunhatã coleta sangue do gringo em uma cabaça e o deposita aos pés da imagem de São Sebastião.
Pajé Guarani
(Para o restante da tribo) Todo o resto é de povo guarani!
Tumulto e gritaria. Os guaranis avançam sobre os troços do corpo do capitão.
Primeiro guerreiro Guarani
Eu comer bunda do gringo!
Segundo guerreiro Guarani
Eu também querer bunda de inimigo!
Lutam pela bunda do gringo até dividi-la avidamente rasgando-a em duas bandas.
Guerreiro Guarani/ancião
Eu quer ovo branco!
Molequeira e alegria na repartição das partes do capitão entre o grupo. Pedaços do corpo do sacrificado são colocados sobre o quarador acima do fogo. Vê-se pernas, braços, pés, mãos, nariz, olhos sendo fritos para o consumo. Celebração da devoração com beberragem de Jurema e rum, através de cântico-dança/mística do grupo de atores durante a qual os objetos do saque são utilizados ludicamente por todos como em um carnaval. Espelhos, tecidos, penicos, chapéus, peças de roupa etc.[6]
Coro de Atores
(Cantam música Vamo Comer de Caetano Veloso & Tony Costa)
Vamo comer
vamo comer feijão
vamo comer
vamo comer farinha
se tiver
se não tiver então
ô ô ô ô
vamo comer
vamo comer faisão
vamo comer
vamo comer tempura
se tiver
se não tiver então
ô ô ô ô
eu não sou deputado baiano
e, como dizia o outro, não sou de reclamar
mas se estamos nesse cano
não consigo me calar
é um papo de pelicano romântico
aberto pro bico de quem alcançar
quem quiser ver
quem quiser ouvir
quem quiser falar
vamo comer, João
vamo comer
vamo comer, Maria
se tiver
se não tiver então
ô ô ô ô
vamo comer
vamo comer canção
vamo comer
vamo comer poesia
se tiver
se não tiver então
ô ô ô ô
O padre na televisão
Diz que é contra a legalização do aborto
e a favor da pena de morte
e disse: não! que pensamento torto!
e a pretexto de aids, aids
nunca se falou de sexo com tanta
franqueza e confiança
mas é bom saber o que dizer
e o que não dizer na frente das crianças
merci boaucoup
merci boaucoup, Bahia
arigatô
arigatô, Jamaica
e Trinidad
e Trinidad-Tobago
ô ô ô ô
´brigado Cuba
thank you Martinica
e Surinan
Belém do Grão-Pará
Y gracias, Puerto
gracias Puerto Rico
ô ô ô ô
baiano burro nasce, cresce
e nunca pára no sinal
e quem para e espera o’verde
é que é chamado de boçal
quando é que em vez de rico
ou mendigo ou polícia ou pivete
serei cidadão
e quem vai equacionar as pressões
do [MST], da UDR
e fazer dessa vergonha
uma nação
vamo comer
vamo comer [7]
Os guerreiros guaranis e as crianças do sexo masculino deixam a cena em direção à oca dos homens. As índias e as crianças do sexo feminino despem, pintam e preparam a rainha imaculada para contrair casamento com o cacique guarani sob a supervisão de Adé-Cunhatã embaladas por cântico sagrado coletivo. As mulheres após ornamentarem a rainha negra imaculada, ainda cantando, dançam com ela uma ciranda de braços dados, no centro da taba, uma ao lado da outra. Vê-se agora o totem/imagem de São Sebastião com a base/peji enfeitado de flores e folhas de palmeira. Os guerreiros se aproximam após toque do sinete/adjá-maracá por Adé-Cunhatã.
Adé-Cunhatã
Virgem negra pronta pra cacique Matalauê.
Cacique Guarani
(Para aias da rainha negra imaculada) Leva ela para oca de cacique!
Adé-Cunhatã sinaliza para as mulheres selvagens conduzirem a rainha negra até a oca do cacique fazendo soar o adjá. A rainha adentra a oca e as mulheres guaranis retornam ao centro da taba sorrindo tímida e faceiramente. O cacique entra na oca. Gritos festivos e toques de atabaques. Canto e dança de toda a tribo. Escuro.
[1] Espécie de cocar grande que pode emoldourar os ombros e a cabeça do usuário. Consultar iconografia de Clovis Irigaray. Particularmente acrílico sobre tela de 1997 da coleção de Sami Kassab “São Sebastião” e acrílico sobre tela de 1996 homônimo de coleção particular. In: BERTOLOTO, José Serafim (2001) Clóvis Irigaray: arte – memória – corpo. Cuiabá, p. 23 e 27.
[2] A festa Guarani ocorre de 6 a 9 de janeiro, todos os anos na sede do município de Itaparica. Há um documentário da TV Brasil intitulado “Os Guaranis” que fornece em parte informações sobre a mística guarani.
[3] Consultar imagens em museu de manto tupinambá adquirido por Maurício de Nassau levado para a europa.
[4] Cachimbo ainda hoje usado no cotidiano e em cerimônias do povo pataxó. Consultar BARON, Dan (2004) Alfabetização cultural: a luta íntima por uma nova humanidade. São Paulo: Alfarrabio, p. 293.
[5] Instumento musical feito com sementes dentro de uma cabaça e um cabo de madeira. Consultar BARON, Dan (2004) Alfabetização cultural: a luta íntima por uma nova humanidade. São Paulo: Alfarrabio, p. 311.
[6] Tomar como referência coreográfica os “ritos de passagem” das místicas do Teatro de Rua de Amir Haddad.
Nenhum comentário:
Postar um comentário