Se antes os testemunhos da ocorrência do fenômeno na atividade teatral deste ou daquele artista cênico, em qualquer época, eram considerados de um ponto de vista que forjava uma suposta natureza eterna e imutável (biológica) do Teatro, hoje os estudos da atuação teatral se aproximam dos fatos antes de tudo como não descolados do seu contexto sociocultural e portanto extremamente densos e complexos em razão de sua inserção histórica.
A psicologia da atuação ou performace coloca-se como um problema da psicologia concreta e de certo modo inconciliável com a lógica formal revelando muitas contradições abstraídas dos diferentes sistemas explicativos: a psicologia da performance teatral vai além da corroboração míope de dados supostamente objetivos típica da psicometria.
Reivindica-se aqui sua explicação enquanto contradição histórica viva e concreta superando as várias maneiras reducionistas com que tem sido considerada e que mudam de tempos em tempos adequando-se às necessidades de diferentes concepções da atividade teatral.
O cerne ou “núcleo duro” da questão reside, como muito bem revela o paradoxo do ator de Diderot, no fato de que na atuação teatral o artista cênico ao representar as grandes paixões e emoções humanas e contagiar afetivamente os espectadores não renuncia à consciência de que o faz intencionalmente mantendo-se, contraditoriamente, afastado e a salvo delas.
A mais importante interrogação do fenômeno aqui em estudo é feita já por Diderot: o sujeito ao atuar teatralmente vive realmente aquilo que representa ou sua representação é uma simulação ou imitação de uma vivência real?
Eis a “senha” para a “abertura do cofre” e resolução do problema fornecida por Diderot: o estado psicológico em que se encontra o sujeito durante a atuação ou performance teatral.
Ao incorporar um papel o sujeito torna-se verdadeiramente outro?
Essa questão está longe ainda de ser satisfatoriamente respondida porque solicita apenas uma resposta. Embora o próprio Diderot já sinalizasse o caminho para a sua resolução ao contrapor a atuação teatral de duas grandes atrizes de sua época (Clairon e Dumesnil) que rerpesentavam de modos diferentes um determinado papel, constatando que suas atuações eram únicas e singulares ao tempo em que ambas performavam, cada uma a seu modo, o mesmo papel.
Segundo a magnífica demonstração de seu pensamento sobre a questão Diderot afirma que antes de pronunciar em uma atuação teatral os textos: “Zaira, você chora!?” ou “Você fique onde está, filha!” os atuantes estão conscientes e sabem o que precisam fazer. Todo o impacto de sua performance sobre a platéia reside em levar o público a perceber como as personagens que atuam se sentem através de gestos e signos exteriores das emoções, mas sem se tornarem reféns do afeto que representam (re)viver em suas atuações.
Os gritos e soluços do atuante bem como todos os seus movimentos em um deslocamento estão registrados em sua memória e são exaustivamente ensaiados antes de serem apresentados ao público. Os atuantes sabem o momento em que devem sacar um lenço e quando deve brotar uma lágrima. Tem claramente em mente quando pronucnciar uma palavra ou som, o tempo exato de fazê-lo – nem antes nem depois.
Vozes trêmulas, enunciados interrompidos, sons sufocados e rápidos, tremores, pernas bambas, veemência e furor ao proferir palavras e frases são apenas um “fazer-de-conta” rigorosamente ensaiado. Dor e sofrimento, tudo, um sublime simulacro - um “golpe de mestre”...
As paixões mostradas pelo atuante através de sua expressividade cênica (corporal), como muito bem disse Diderot, são componentes estranhos ao texto dramático emquanto Literatura mas absolutamente necessários ao sentido que os mesmos possam adquirir em uma representação teatral. São parte de uma unidade cênica que mescla o verbal e o não-verbal de modo consciente e sígnica (convencional).
O que é substancial no paradoxo da atuação teatral é a presença de dois tipos de estado psíquico que não se fundem completamente.
Primeiramente Diderot chama atenção para o caráter suprapessoal ou “universal” das emoções que são transmitidas durante uma atuação teatral. A rigor não se tratam bem de “emoções” mas de sua expressão convencional ou “idealizada” e dos estados psicológicos reais a que elas correspondem.
Os sentimentos expressos pelo atuante não são a expressão de um estado psicológico real do sujeito, trata-se antes do modo particular de como esta ou aquela pessoa que performa uma emoção teve oportunidade de vivenciar determinado sentimento (memória afetiva) ou que resulta da sua imaginação (re)criadora. São artifícios, suscitados pela força criativa dos seres humanos e como tal devem ser considerados: procedimentos não-naturais. São semelhantes a qualquer outra obra de arte assim como um romance, uma música, uma escultura, um filme: artefatos culturais.
É por esta razão que os sentimentos na atuação teatral não se confundem com os sentimentos do sujeito que os performa. Como disse Diderot “um gladiador não morre como qualquer um, na cama...”
Ao afirmar que um grande artista cênico seria como um gladiador romano Diderot queria dizer que nas atuações teatrais de uma morte ela precisa ser apresentada pelo atuante de modo impactante e extracotidiano. A morte verdadeira e simples em uma atuação teatral contradiria o sentimento estético – fundado na convenção, no acordo, na cumplicidade entre o que se apresenta na área de representação (palco) e na área de observação (platéia).[1]
Então o conteúdo dos sentimentos na atuação teatral é diferente do conteúdo dos sentimentos na vida real não apenas do ponto de vista do que possa ser ou seja representado neles. O mais importante é que eles divergem no modo como se organizam as conexões psíquicas que levam à sua expressão cênica (corporal).[2]
Tentando, ao seu modo, chamar atenção para essa qualidade outra do sentimento na atuação teatral Diderot recorre ao exemplo de um casal de atuantes profissionais que se odiavam mutuamente mas representavam, sem nenhum pudor ou constrangimento, cenas nas quais demonstravam nutrir grande apreço um pelo outro. E que foram ovacionados “em cena aberta” pela platéia justamente por isso.[3] O fato teria ocorrido durante uma apresentação da peça O Traído Imaginário de Moliére, na cena terceira do quarto ato.
Mais adiante Diderot reporta-se a este episódio do casal de atuantes referindo-o como “cena dupla”: uma cena de amantes e outra cena de conjugues. Ou seja, uma cena de amor atuada que sobrepõe-se a uma cena de litígio familiar real vivida. Assim ele julga conseguir demonstrar exemplarmente a pertinência de sua tese.
Como já disse antes, a tese de Diderot se fundamenta em dados concretos e nisso reside sua força, seu significado não efêmero. É a semente de uma futura teoria científica da psicologia da atuação.
Mas existem fatos de caráter oposto na atuação teatral que contradizem, em parte, o que afirma Diderot. Estes fatos são descritos em um outro sistema de atuação teatral que apregoa um outro tipo de vivência cênica durante a atuação de papéis. É o caso do recém-criado método para atuação teatral de Stanislavskii.
Todavia a suposta contradição existente entre eles, insolúvel por uma psicologia abstrata porque formulada como uma questão metafísica pode ser resolvida facilmente quando se aborda esta problemática do ponto de vista do materialismo histórico-dialético.
[1] Consultar JAPIASSU, Ricardo O. V. (2001) Criatividade, Criação e Apreciação Artísticas: a atividade criadora segundo Vygotsky In: VASCONSCELOS, Mário S. [Org.] Criatividade: Psicologia, Educação e conhecimento do novo. São Paulo: Moderna, p.43-58.
[2] Veja-se a exposição que Vygotky faz da reação estética no nono capítulo em VYGOTSKY, L. S. (1998) Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes. Ali ele esclarece que a especificidade da reação estética está na retenção e no controle das manifestações exteriores das emoções. Também faz um outro comentário importante muito pertinente nos dias de hoje, ainda marcados pela intolerância à ousadia nas/das criações artísticas: “A representação de um assassinato não provoca absolutamente um assassinato. A representação do adultério não acarreta devassidão; as relações entre a arte e a vida são muito complexas, e do modo mais aproximado podem ser caracterizadas da maneira como se segue... a diferença entre a emoção real e a estética está em que esta não é refletida instantaneamente por nenhuma ação.” p. 316. [Negritos meus]
[3] Aplaudidos durante a atuação teatral interrompendo o fluxo da ação dramática.
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