sábado, 19 de março de 2011

ERA UMA VEZ A PSICOLOGIA CIENTÍFICA (36)

O oitavo capítulo intitulado A Comunalidade Não Interpretativa e Sua Prática Clínica [The Noninterpretive Community and its Clinical Practice] tem início com os autores indagando qual seria a natureza deste tipo de ambiente de aprendizado (que conduz o desenvolvimento) no qual, entre outros, Vigotskii e Wittgenstein servem de sustentação teórica. Eles fornecem pistas do que vem a ser sua prática clínica: uma comunalidade não definida em termos geográficos e tampouco caracterizada por tarefas ou ideologia.


Definem os grupos terapêuticos performáticoculturais sob seu rigoroso acompanhamento clínico como ambientes apoiadores do desenvolvimento colaborativo de seus integrantes numa perspectiva não instrumental, não pragmática (instrumento-para-resultado), isto é: como método em ação (instrumento-e-resultado) de orientação vigotskiana.


Esclarecem que trata-se de um grupo de práticas “para si” - e não “em si” - parafraseando a metáfora marxiana para a consciência crítica. Ressaltam que os grupos de terapia social apoiados por eles se encontram em permanente interação com o mundo histórica e continuadamente criado e recriado, distinguindo-se de outras agremiações de orientação “socializante” de caráter autoperpetuador típico de instituições acadêmicas coorporativistas e dos centros destinados à “cura” da doença mental – que têm por objetivo alcançarem metas socialmente estabelecidas numa perspectiva instrumental (instrumento-para-resultado).


Reafirmam que pensar a socialização alijada da sua dimensão histórica reitera uma compreensão reificada (naturalizada ou alienada) da vida social – algo exaustivamente advogado pelo pensamento marxiano. Deste modo concebida, a socialização ressaltaria as distorções do entendimento da sociedade “em si” e a denegação de suas raízes econômicoculturais.


Alertam para uma forte tendência à superalienação nos modos de ser e pensar das pessoas na contemporaneidade – o que termina por engendrar um psiquismo “degenerado”. Reiteram que o objetivo da terapia social não é “mudar” o mundo mas ser parte dele e do seu processo permanente de atualização, ou seja, que o objetivo não é “substituir” o mundo mas pensá-lo como algo que necessita “ser substituído” [... our commitment is to be the world: not to “take it over” but “to be taken over.” (p.158) ].


Concluem a delineação de seu método (instrumento-e-resultado) revelando que este tem sido arduamente colaborado e aperfeiçoado ao longo de quase um quarto de século de árduo trabalho “experimental” devotado à um tipo de prática clínica, livre de interpretações e suposições “perniciosas” típicas do pensamento modernista. Explicitam as principais características do método que vivenciam: uma comunalidade de práticas “para si” que busca ser desenvolvimental, terapêutica, filosófica e performática.


No subitem Uma Comunalidade PARA o Desenvolvimento [A Development Community] Holzman&Newman defendem que uma comunalidade autoconsciente precisa rejeitar a sistematização filosófica e seus artefatos instrumentais. [13]


NOTA [13]
Aqui considerei adequado ressaltar na tradução o tipo de concepção de desenvolvimento dos autores explicitado na obra Todo Poder ao Desenvolver! [All Power to Developing!] de 2003 - não relacionado na bibliografia do livro - no qual ressaltam implicações teórico-práticas para abordagens críticas dos modos de atuação ou performance de sujeitos em interação em grupos quando se consegue distinguir entre estágios [stages = palcos] DE desenvolvimento e estágios PARA o desenvolvimento. Cf. JAPIASSU, Ricardo (2010) Metodologia do Ensino de Teatro.Campins:Papirus,p. 57




Para eles (os autores) o entendimento “estático” ou marxistamodernista do conceito marxiano de PRÁXIS como atividade prático-crítica revolucionária (instrumento-PARA-resultado) não é suficiente para concretizar uma “revolução” genuina nos modos de ser e pensar das pessoas: o que julgam genuinamente revolucionário é ressaltar e vivenciar o próprio mecanismo de atualização permanente da PRÁXIS por si própria (instrumento-E-resultado).


Esclarecem que o acompanhamento clínico das comunalidades devotadas à terapia social rejeita qualquer tipo de “cimento” conceitual particularmente a noção de “causalidade” - típica do pensamento modernista; entendem que este tipo de epistemologia “avaliadora” (julgadora) impede qualquer possibilidade de desenvolvimento e reafirmam seu compromisso com uma lógica que valorize a subjetividade e uma atividade psíquica que descarte o aprisionamento a verdades absolutas e todo o aparato instrumental pragmatista – caracterizado pela busca “obsessiva” por resultados (catarse ou cura).


Seu entendimento é o de que a procura pela verdade “objetiva” que tem caracterizado os estudos sobre o desenvolvimento da humanidade ao longo de 2500 anos é o principal obstáculo para o desenvolvimento continuado da vida humana; que existem sérios problemas com o uso de critérios supostamente objetivos para uma abordagem adequada ao desenvolvimento tipicamente humano; que as regras do objetivismo produziram uma geração paralizante e enfadonha de conhecimentos limitadores do crescimento pessoal e social das pessoas: a geração cognominada por Gergen como “politicamente identificada” [identity politics] mas que eles a preferem entender como “psicologicamente identificada” [identity psychology].


Finalizam o subitem esclarecendo que a comunalidade de práticas terapêuticas que defendem é bem menos próxima dos estudos objetivos aproximando-se mais do que seria o estudo subjetivo da objetividade. Mas que não tem compromisso com nenhuma destas duas vertentes; que os terapeutas sociais buscam descobrir – na prática – uma lógica para o desenvolvimento (a prática de um método, uma nova epistemologia) que baseia-se na atividade relacional comprometida com a emergência de novos modos de atuação do psiquismo humano em que só, e somente só, via APRENDIZADO seriam possíveis processos de DESENVOLVIMENTO – desde que houvesse a instalação de múltiplas e variadas zonas de desenvolvimento proximais, valendo-se da metáfora vigotskiana para referir os processos de formação social da mente.


O próximo subitem denomina-se A Comunalidade Terapeutica [The Therapeutic Community] e tem início com a problematização do ponto de vista marcadamente cognitivista (racionalista) do pensamento modernista a partir do qual todos os aspectos do psiquismo humano reduzem-se à cognição e suas várias instrumentalidades. Explicam que a hegemonia da noção de causalidade é uma consequência da ontologia da Física modernista e ressaltam sua importante contribuição para a falência da ingênua ambição socialista de “mudar o mundo” aproveitada pelo oportunismo capitalista pela mercantilização das políticas estadistas voltadas para o bem-estar social descartando suas preocupações assistencialistas (humanistas).


Revelam que a associação do poder bélico à ciência moderna, desde seus primórdios no século XVI até à descoberta da energia nuclear, tem sedimentado os elos entre conhecer e controlar; que esta tem sido a concepção dominante nos empreendimentos da Psicologia aplicada e particularmente das práticas clínicas em psicoterapia.


Os autores questionam os limites da medicalização na promoção do bem-estar das pessoas. Para eles, os procedimentos psiquiátricos têm por objetivo o conhecimento das causas físicas dos problemas para controlar melhor seus efeitos nas pessoas desprezando o papel dos vetores socioeconômicos na “doença” mental; que ao fim e ao cabo a medicalização não obtem êxito em promover o bem-estar das pessoas.


Para Holzman&Newman talvez o sentido das práticas terapêuticas não deva ser o de se tornarem mais “científicas” (medicalizantes) mas o de desafiarem o paradigma científico dominante na clínica; sua suposição é que o entendimento clínico obtido através da terapia possui uma natureza não científica, corroborada pelo pensamento de outros profissionais da psicoterapia que integram também a parcela de especialistas dedicados ao tratamento e cuidado da saúde mental comprometidos com o entendimento pós-modernista do psiquismo humano.


Finalizam o subitem esclarecendo que a comunalidade de práticas que advogam (grupos de terapia social) move-se através de uma atitude mais terapeuticamente desenvolvimental do que cognitivamente controladora; que a questão inaugural da prática clínica defendida por eles não é a descoberta do que é considerado “certo” ou verdadeiro mas de como seria possível mover-se de onde se está para onde se deseja ir.


Para os autores, o estudo do psiquismo e da vida dos seres humanos solicitam o desenvolvimento de uma nova epistemologia ancorada na valorização da dimensão relacional prático-crítica necessariamente comprometida com a mudança e transformação continuada das pessoas e do ambiente que estas colaboram.


No subitem A Comunalidade Filosófica [The Philosophical Community] reiteram que o questionamento da atividade e não a busca de respostas é o que movimenta os grupos de terapia social; que a singularidade da terapia social reside em interrelacionar a planificação antecipada dos modos de atuar com os resultados obtidos a partir da atuação; que são as contradições emergentes deste confronto dialético entre o pensar e o fazer em ação (atualizado/performado) que elevam sua prática clínica do abstrato ao concreto para alcançar o entendimento da vida social e da história enquanto algo que se encontra sendo vivenciado e colaborado simultaneamente.


Destacam a importante compreensão dos jogos de linguagem aos quais se referia Wittgenstein como fundamentais para o abandono da concepção modernista naturalizante da linguagem como “coisa em si.”


Encerram o subitem revelando que, para eles, o jogo continuado de palavras emergente no ambiente terapêutico é o que permite a “descoberta” de novos sentidos para o modo de ser e pensar das pessoas; o que abre portas para que todos venham a se sentir “melhor”; que o sentir-se “melhor” por parte de cada um dos integrantes do grupo (que inclui os terapeutas) é o que buscam ao formularem os princípios de sua prática clínica.


Com o subitem Uma Comunalidade Performática [A Performatory Community] os autores concluem o primeiro item do capítulo que explicita as principais características de uma atitude não interpretativa no tratamento clínico em grupo.


Advertem para os riscos de reducionismo no entendimento do que Vigotskii está a propor com a metáfora de zona de desenvolvimento proximal; algo comum (o reducionismo) em vigotskianos ortodoxos (marxistasmodernistas) que tomam a zdp como intrumento para “medição” padronizada do conhecimento cognitivo. Defendem que para Vigotskii a unidade para compreensão do desenvolvimento não é o sujeito em si ou para si no grupo mas o grupo de sujeitos em si e para si.


Esclarecem que o grupo, para (se) desenvolver, deve continuadamente criar e recriar seus modos de ser e pensar; que o desempenho do grupo e dos sujeitos em grupo deve ser performático (atuado/atualizado).


Finalizam o subitem exortando a necessidade clínica de engajamento lúdico terapêutico no permanente jogo de atuar (sendo quem não se é; experimentando novos modos de ser e pensar) e performar sem medo ou vergonha de permanecer fiéis a uma suposta autenticidade. Encerram, assumindo-se sem culpa inautênticos, perguntando retoricamente qual seria a fonte do certificado de autenticidade das pessoas. [We are shamelessly inauthentic. For from does authenticity derive? (p. 165)]


Passam a desenvolver o próximo item do capítulo intitulado Terapia Social [Social Theraphy]

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