quarta-feira, 24 de agosto de 2011

ESCOMBROS DO MUNDO LIVRE (IV)

Terceira movimentação de personagens
COZINHA

Japinha entra carregando Sonia, desfalecida, nos braços. É seguido por Mila e outros alunos.

Japinha     
Acode, dona Vilma: A Sonia “apagou”!
Dona Vilma
(Assustando-se) Jesus, Maria, José! O que foi que aconteceu?!
Mila
A gente tava conversando na sala, antes da professora chegar, aí ela foi ficando branca, verde, e caiu dura no chão…
Dona Vilma
(Pegando uma cadeira) Bota ela sentada aqui! (Para o grupo de curiosos) Pronto gente, volta pra sala, a menina precisa de ar! (Nervosa) Vão logo, anda! (Para Mila) Não deixa ela cair! (Para Japinha enquanto tenta reanimar Sonia que é amparada por Mila) Corre, Japinha, pede uma garrafa de álcool lá no almoxarifado! (Para Mila, sustentando Sonia com as mãos) Fica na porta, Mila, não deixa juntar muita gente, não. (Para Sonia, dando-lhe suaves tapas no rosto e massageando-lhe o pulso) Sonia! Ô, Sonia! Acorda minha filha! Sonia!

Mila posiciona-se na porta, impedindo a entrada dos curiosos.

Voz em off
Quem foi?
Mila          
A Sonia!
Voz em off
Qual Sonia?
Mila
Da oitava B.

Japinha retorna com a garrafa de álcool. Mila o deixa entrar na cozinha mas impede o acesso dos curiosos que se acotovelam para espiar pela fresta aberta da porta.

Japinha
(Entregando a garrafa de álcool à Dona Vilma) Aqui, dona Vilma!
Dona Vilma
(Para Japinha, destampando a garrafa e colocando-a sob o nariz de Sonia, que reaje ao odor do álcool) Fica lá na porta. (Para Mila) Mila, vem cá!

Japinha troca de lugar com Mila.

Dona Vilma
(Para Mila, passando um pouco de álcool nos pulsos de Sonia) Segura ela!
Mila
(Desatando o sutiã de Sonia) Acho que é bom folgar o sutiã…


Dona Vilma
(Para Sonia) Sonia! Ô, Sonia!

Sonia dá sinais de recuperação.

Mila
Tá ouvindo, Sonia?

Sonia responde afirmativamente com a cabeça, mas ainda com os olhos fechados.

Dona Vilma
(Para Sonia) Respira fundo, filha. (Sonia atende a Dona Vilma) Isso… Mais uma vez…

Sonia abre os olhos mas ainda está tonta.

Mila
(Para Sonia) Cê tá bem?
Dona Vilma
O que você está sentindo, “essa menina”?
Sonia
Mal estar…
Voz em off
O que foi?!
Japinha
(Anunciando aos curiosos) Ela já tá bem. Desmaiou.
Voz em off
Deixa eu ver, deixa eu ver!


Japinha
(Forçando a porta) Num vai ver porra nenhuma! Se manda.
Voz em off
Só um pouquinho, Japa?!
Japinha
(Chutando alguém) “Casca fora”, “carái”!

Empurram a porta da cozinha, abrindo-a com violência. Japinha sai correndo atrás de quem a empurrou. Gritos, risos e correria dos curiosos em fuga perseguidos por Japinha.

Dona Vilma
(Para Japinha e os curiosos, dirigindo-se à porta) O que é isso gente?! (Fecha a porta, trancando-a por dentro) Tenham dó! (Voltando até Sonia) “Quem-Deus-pade”?!
Mila
(Pra Sonia) Tá melhor?

Sonia responde afirmativamente várias vezes com a cabeça.

Dona Vilma
(Servindo um copo de café para Sonia) Vou botar um café amargo pra você, ajuda a “espertar”…
Sonia
(Ainda tonta) ’Brigado, dona Vilma.
Dona Vilma
(Entregando-lhe um copo com café) Cê tá se alimentando bem “essa menina”?
Mila
Tá não, dona Vilma: ela só vive no regime, é “modelo”.
                                      
Sonia toma o café.

Dona Vilma
Modelo?!
Mila
De passarela.
Dona Vilma
E pra ser modelo precisa passar fome? Cruz-credo!

Sonia começa a chorar. Dona Vilma toma o copo de café de suas mãos antes que ela o derrube.

Mila
O que é que cê tá sentindo, Sonia? Fala criatura.
Sonia
Dor…
Dona Vilma
Onde que dói, filha?
Sonia
(Mostrando o estômago) Aqui…
Mila
(Para Dona Vilma enquanto Sonia continua chorando) Será úlcera?!
Dona Vilma
Misericórdia! A menina com úlcera e eu dei café…
Mila
É úlcera, Sonia?
Sonia
Não.
Dona Vilma
Tem certeza, “essa menina”?

Sonia                             
Tenho.
Dona Vilma
(Comovida) É fraqueza, né, minha filha?

Sonia responde afirmativamente com a cabeça.

Dona Vilma
(Para Mila) Ô Mila, vai pra sala… Num fica perdendo matéria não. Avisa que ela tá melhor.

Mila responde rápida e afirmativamente com a cabeça para Dona Vilma.

Mila
(Para Sonia, passando-lhe carinhosamente a mão pelos cabelos) Cê quer q’ueu fique com você? Se quiser, eu fico…
Sonia
Precisa não. Pode ir, Mila. Daqui um pouco eu vou.
Mila
(Dando um beijo carinhoso em uma das faces de Dona Vilma) Tchau, fôfa.
Dona Vilma
(Dando-lhe pressa) Anda Mila: vá logo pra sala, vai!
Mila
(Para Dona Vilma, ao deixar a cozinha) Feche a porta, dona Vilma, tem muito epírito santo de olho aqui!

Mila sai. Dona Vilma passa a chave na porta.


Dona Vilma
(Providenciando um lanche para Sonia) Olha, eu trouxe pãozinho. Vou passar manteiga, esquentar… (Lembrando-se) E tem também um resto de leite em pó aqui … (Preparando o lanche) Há quanto tempo você não se alimenta, filha?
Sonia
Uns dois dias.
Dona Vilma
(Ocupada com o lanche) Virgem santíssima! Pra quê tanto sofrimento? Tudo isso só pra ser modelo?
Sonia
Minha mãe tá desempregada, dona Vilma…
Dona Vilma
Misericórdia!
Sonia
A comida lá em casa acabou antes de ontem.
Dona Vilma
Você só está com a merenda da escola?
Sonia
Ás vezes, nem a merenda, dona Vilma.
Dona Vilma
Por que, filha? A merenda é boa.
Sonia
Eu sei. Mas quem come merenda, eles “fala” qu’é pobre.
Dona Vilma
(Servindo o lanche para Sônia) Mas você não pode ficar sem se alimentar “essa menina”!
Sonia
É que eu tenho vergonha, dona Vilma…


Dona Vilma
(Enquanto Sônia se alimenta) Esses jovens de hoje… Tudo cheio de vergonha pra umas coisas e sem vergonha nenhuma pra outras… “Rái”, ái… Disconjuro… Come devagar, viu? Pra não passar mal… E para com essa “bestage” de ter vergonha da minha merenda. Sabe, “essa menina”, a gente prepara a comida aqui com muito gosto. Não é nenhum restaurante granfino, mas é tudo muito limpo, viu… Às “vez”, eu fico “mordida”, revoltada mesmo, quando cês fazem guerra de pão. Tanta gente sem ter nem um biscoito pra roer… Depois ficam aí, desmaiando de fome!
Sonia
Posso pedir uma coisa?!
Dona Vilma
(Desconfiada) Depende… Tá se sentindo melhor?
Sonia
(Responde afirmativamente com a cabeça) Não fala pra ninguém o que eu contei.
Dona Vilma
Mas, “essa menina”?!
Sonia
Meu nome é Sonia, dona Vilma.
Dona Vilma
Eu sei. Ô “dona” Sonia… Sabe de uma coisa?! Eu não concordo com isso não – com esse fingimento, de querer ser uma coisa que a gente não é.
Sonia
Por favor, por favor, dona Vilma?!
Dona Vilma
Tá. Tá bom: eu num conto, “sínha” modelo!


Sonia
Nem pra Mila!
Dona Vilma
Mas a Mila é sua amiga!
Sonia
Promete?!
Dona Vilma
Só se você também me prometer uma coisa...
Sonia
(Limpando os lábios com as mãos após terminar o lanche) Eu prometo, diga.
Dona Vilma
Todo dia, de hoje em diante, seja lá o que for que tenha na merenda, você vai comer!
Sonia
(Entregando-lhe o copo vazio) Obrigado, dona Vilma. Muito obrigado! (Recuperada e vaidosa) Saiu meu batom?

Dona Vilma, com o copo vazio na mão, olha para Sonia, meneando a cabeça.

Nenhum comentário:

Postar um comentário