A maneira didática para expor a nossa abordagem a este intrigante problema é ressaltar a contradição ou oposição entre os dois tradicionais tipos de abordagem à questão.
A primeira delas procura equacionar o problema recorrendo a uma suposta crença ingênua na qualidade psíquica geral para a ocorrência do fenômeno, o que não vai além do reconhecimento do “talento” enquanto senso comum através de técnicas introspeccionistas.[1]
Já a segunda tem como peculiar um viés metodológico que é o do “isolamento” do fenômeno da performance ou atuação teatral como habilidade singular ou “vocação” do sujeito a partir de testes aplicados em laboratórios, o que as faz de algum jeito se oporem uma a outra enquanto sistemas diferentes de indagação.[2]
A principal falha de ambas é seu total empirismo, isto é, a tentativa de partir da superfície aparente do fenômeno para compreender os fatos com base em sua “imediatez” e assim arrogarem-se o estabelecimento de regras supostamente “científicas”. [3]
Na realidade, a observação da atuação teatral típica das primeiras abordagens (baseadas no método introspeccionista) é um campo fértil para a constatação de grande número de aspectos originais, idiossincráticos e extraordinariamente significativos na esfera da vida cultural, uma vez que são acompanhadas as práticas de grandes criadores e mestres das artes cênicas. Mas toda a profusão de dados coletados a respeito do fenômeno que se propõem discutir não têm ultrapassado o status de uma recolha não-científica de observações pontuais da ocorrência artística de uma “qualidade psíquica geral”.
De maneira semelhante, o empirismo radical das segundas abordagens (baseadas em “testes” de aptidão) que caracterizam a psicotecnia (no âmbito da reflexologia ou behaveourismo), na tentativa desesperada de mensurar “controladamente” a ocorrência objetiva do fenômeno, supostamente julgam abraçar um procedimento científico mas acabam subjugando-o teoricamente a um método predeterminado que também não vai além da superfície ou ocorrência “imediata” dos fatos.
Como já se disse antes, cada uma dessas abordagens tem seus próprios limites e imperfeições. A tentativa de explicação da performace teatral que parte do desempenho extraordinário de atores ou do ensino de técnicas para a atividade teatral, da observação dos ensaios e das apresentações de um espetáculo, isto é, que busca generalizar a experiência única de um artista cênico ou as habilidades de um sujeito em particular, concentra sua atenção na especificidade e peculiaridade, na originalidade de uns poucos eleitos, atribuindo apenas a eles a capacidade expressiva das emoções. Desse modo submetem todos os aspectos intrigantes deste fenômeno ao desempenho extraordinário de uma pessoa e de um ou outro artista cênico buscando infrutiferamente generalizar sua atuação através de normas psicológicas para todos e qualquer um.
Ocorre que a psicologia da atuação teatral é apenas um aspecto do psiquismo tipicamente humano e justamente por integrar um sistema mais ambrangente do funcionamento mental, quando se supervaloriza unicamente o desempenho pessoal, seja o “talento” ou a “vocação”, esvai-se todo significado científico deste complexo fenômeno, banalizando-o e limitando-o ao âmbito do corriqueiro e do cotidiano.
Em outros termos, quando se sobrepõe um sistema particular de atuação teatral ao sistema totalizante e geral da performance teatral, ocorre a tentativa ingênua e infrutífera de explicação deste intrigante fenômeno do psiquismo humano em razão deste reducionismo e viés metodológico, não podendo sua descrição ser em hipótese alguma considerada mais do que apenas um relato casual. É o que ocorre no sistema de Stanislavskii e no sistema psicológico de Ribot. [4]
A natureza da pesquisa psicotécnica (do behaveourismo ou reflexologia) também não se dá conta de sua superficialidade para abordar toda a originalidade e riqueza da psicologia da atuação teatral por não conseguir enxergar na criação artística cênica nada além de uma combinação de estados psicológicos do mesmo modo como ocorre em toda e qualquer atividade laboral. Não leva em conta que a atuação teatral é em si mesma a criação de um estado psicofisiológico singular e falha ao tentar estudar a qualidade cênica em sua plenitude e formas múltiplas de ocorrência no psiquismo humano através de sua “medição” através de “testes” supostamente objetivos e corriqueiros, banalizando a riqueza da atuação teatral e sua especificidade psicológica.
A novidade da nossa abordagem a esta problemática reside, antes de tudo, em um esforço no sentido de superar o radicalismo empírico presente nessas duas tradicionais maneiras de se equacionar a questão, buscando conhecer a psicologia da atuação teatral em toda sua plenitude enquanto atividade qualitativamente nova e singular à luz de sua ocorrência psicológica geral no amplo espectro do psiquismo humano e, ao mesmo tempo, fazer com que os aspectos objetivos deste fenômeno passem a ser explicados e adquiram um caráter totalmente diverso convertendo assim o abstrato em concreto.[5]
[1] O introspeccionismo foi o método inaugurado pelo alemão Wilhem Wundt (1832-1926)
[2] Vigotskii embora reconhecesse o valor da reflexologia advogava uma perspectiva mais abrangente da psicologia que reconhecesse a especificidade do funcionamento mental humano – que é radicalmente diferenciado do funcionamento no sistema nervoso central dos animais em geral. A diferença entre reação e reflexo na psicofisiologia é que a primeira diz respeito às ações de um organismo vivo sem sistema nervoso em resposta aos estímulos do meio. Já os relfexos (objeto de interesse do behaviourismo) regulam o comportamento de organismos com sistema nervoso. Na época de Vigotskii a psicologia consignava os estudos laboratoriais dos seres humanos como reflexologia e designava o estudo das reações dos organismos vivos, com ou sem sistema nervoso, reatologia.
[3] Uma consulta a textos de Vygotsky que discutem a questão do método na Psicologia podem contribuir para entender-se o que ele está a dizer aqui. Em VYGOTSKY, L. S. (1996) Teoria e método em Psicologia. São Paulo: Martins Fontes, por exemplo, ele diz: “Do ponto de vista da psicologia [da atividade], a reflexologia representa outro ponto de vista, tão inaceitável quanto o da psicologia empírica. Se esta última estuda a psique sem comportamento, em sua versão isolada, abstrata e separada de tudo, a primeira procura ignorá-la e estuda o comportamento prescindindo dela... Limita o estudo do comportamento humano a seu aspecto biológico, ignorando o fator social. Estuda o homem somente no que se refere a sua pertença ao mundo geral dos organismos animais, a sua fisiologia, já que se trata de um mamífero.” [Itálicas minhas], p. 51.
[4] Consultar VYGOTSKY, L. S. (1996) Teoria e método em Psicologia. São Paulo: Martins Fontes, p. 42: “O material da psicologia empírica, sempre tingido de uma tonalidade subjetiva e extraído, em todos os casos, do estreito poço da consciência individual, junto com seu método principal, que reconhece o caráter essencialmente subjetivo do conhecimento dos fenômenos psíquicos, mantem nossa ciência [a Psicologia] tão atada e limita tanto sua possibilidade que a condena, assim, à atomização da psique, a sua fragmentação em numerosos fenômenos, independentes uns dos outros, e a incapacidade de agrupá-los... O testemunho subjetivo sobre as próprias sensações nunca pode dar uma justificativa para suas explicações...”
[5] A transformação ou conversão do abstrato em concreto só é possível através do Método da Economia Política segundo a filosofia do Materialismo histórico-dialético como o próprio Marx adverte: “A população é uma abstração, se desprezamos, por exemplo, as classes que a compõem... O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, a unidade do diverso... O concreto aparece no pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação... O método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzí-lo como concreto pensado. Mas este não é de modo nenhum o processo da gênese do próprio concreto.” [Negritos meus] Consultar MARX, Karl (2005) Para a Crítica da Economia Política In: MALAGODI, Edgard [Trad.] Karl Marx – vida e Obra. São Paulo: Nova Cultural, Série Os Pensadores, p. 23-54, p. 39-40.
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