domingo, 26 de dezembro de 2010

ISABEL (2)

PRIMEIRA PARTE
PRIMEIRA REGÊNCIA (1871-1872)
O Gabinete Rio Branco

Uma procissão em louvor de Nª Srª da Boa Morte atravessa a cena ao som de matracas e cânticos rituais tradicionais à luz de velas.





Coro de senhoras negras ex-escravas
Valei-nos Nossa Senhora da Boa Morte!
Mãe Maior [Anciã]
Livrai-nos do julgo masculino!
Coro de senhoras negras ex-escravas
Livrai Mãe Senhora todas as mulheres do julgo masculino!
Mãe Pequena
Poupai Maria Mãe de Deus as mulheres negras mães e seus filhos do escravismo!
Coro de senhoras negras ex-escravas
L’Ôdô Yá! L’ôdô Yá!
Mãe Maior
Grande Senhora, em seu nome pedimos contribuições a todos...
Mãe Pequena
Para alforriar a realeza de além-mar subjugada à força bruta
Coro de senhoras negras ex-escravas
E a todos os que são condenados ao escravismo indigno
Mãe Maior
Pedimos em nome das vozes escravizadas d’África
Mãe Pequena
Eu [África] triste abandonada, em meio das areias esgarrada, perdida marcho em vão...
Coro de senhoras negras ex-escravas
(Entoando em modo de jogral Vozes D’África de Castro Alves)
Se choro... bebe o pranto a areia ardente
Talvez... pra que meu pranto, ó Deus clemente!
Não descubras no chão...
        E nem tenho uma sombra de floresta...
        Para cobrir-me nem um templo resta
        No solo abrasador...
        Quando subo às pirâmides do Egito
        Embalde aos quatro céus chorando grito:
        “Abriga-me, Senhor!...”
[...] Quando eu passo no Saara amortalhada...
Ai! dizem: “Lá vai África embuçada no seu branco Albornoz...”
        Nem vêem que o deserto é meu sudário
        Que o silêncio campeia solitário
        Por sobre o peito meu.
Lá no solo onde o cardo apenas medra
Boceja a Esfinge colossal de pedra
        Fitando o morno céu.
De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim...
Onde branqueja a caravana errante,
E o camelo monótono, arquejante
         Que desce de Efraim...
Mãe Maior
[...] Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
        De vingança e rancor?...
E que é que fiz, Senhor? Que torvo crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio vingador?!...
Mãe Pequena
[...] Vi a ciência desertar do Egito...
Vi meu povo seguir – judeu maldito –
        Trilho de perdição.
Mãe Maior
Depois vi minha prole desgraçada
Pelas garras d’Europa – arrebatada –
        Amestrado falcão!...
[...] Hoje em meu sangue a América se nutre
- Condor que transformara-se em abutre,
        Ave da escravidão.
 [...] Basta, senhor! [...] Há dois mil anos... eu soluço um grito...
Escuta o brado meu lá do infinito
Coro de senhoras negras ex-escravas
Meu Deus! Senhor, meu Deus!

         A procissão de negras ex-escravas deixa a cena. Escurecimento lento.



         Luz sobre sala de audiência do Gabinete Rio Branco. A Princesa Isabel Cristina Leopoldina de Bragança lê alto e bom som páginas de um livro para alguns assessores. Usa uma camélia branca como broche apensada ao peito na altura do coração.

Camélia - símbolo da luta pela abolição do escravismo no Brasil




Princesa Isabel
(Lê e diz o poema Mater Dolorosa de Castro Alves)

Meu filho, dorme, dorme o sono eterno
No berço imenso, que se chama – o céu.
Pede às estrelas um olhar materno,
Um seio quente, como o seio meu.

Ai! borboleta, na crisálida,
As asas de ouro vais além abrir.
Ai! rosa branca no matiz tão pálida,
Longe, tão longe vais de mim florir

Meu filho, dorme... Como ruge o norte
Nas folhas secas do sombrio chão!...
Folha dest’alma como darte à sorte?...
É tredo, horrível o feral tufão!

Não me maldigas... Num amor sem termo
Bebi a força de matar-te... a mim...
Viva eu cativa a soluçar num ermo...
Filho, sê livre... Sou feliz assim...

- Ave – te espera da lufada o açoite,
- Estrela – guia-te uma luz falaz.
- Aurora minha – só te aguarda a noite,
- Pobre inocente – já maldito estás.

Perdão, meu filho... se matar-te é crime...
Deus me perdoa... me perdoa já.
A fera enchente quebraria o vime...
Velem-te os anjos e te cuidem lá.

Meu filho dorme... dorme o sono eterno
No berço imenso, que se chama o céu.
Pede às estrelas um olhar materno,
Um seio quente, como o seio meu.

        Fecha o livro e coloca-o sobre a escrivaninha.

Princesa Isabel
(Para os assessores) Mater Dolorosa - quinto poema de Os Escravos de Antônio Frederico Castro Alves, escrito aos 7 de junho de 1865, em Recife... (Pausa) Uma pena ter sido colhido tão jovem pela tuberculose o nosso poeta... 24 anos!? – o arauto da abolição do escravismo no Brasil... Cuidem para que seja sancionada a Lei do Ventre Livre ainda neste ano de 1871, também uma homenagem póstuma ao bardo baiano, antes que finde o período destinado à minha primeira imperial regência. O texto do decreto já foi revisado e segue assinado por mim devendo ser aprovado, sem objeção, pela Assembleia, em 28 de setembro próximo. É este o meu imperial dever ético - e vontade política.

Assessor Chefe do Gabinete Rio Branco
Providenciarei o que Sua Alteza Imperial ordena instantaneamente! Com sua permissão, Princesa?

Retira-se apressado e reverentemente sendo seguido por assessores subordinados com o texto manuscrito da Lei nas mãos.

Princesa Isabel
(Após a saída dos assessores) E então meu caro José... O que clamam os ex-combatentes negros, nossos heróis da vitória brasileira sobre o Paraguai?
Jose do Patrocínio
Recusam-se retornar à condição de escravos por terem sido condecorados pelo Império. Estão sendo perseguidos e sofrendo todo tipo de pressão por parte dos antigos “donos” por isso...
Princesa Isabel
É necessário haver uma ampla movimentação social em favor da abolição do escravismo para conferir legitimidade aos atos do Império... quero dizer: para que as palavras saltem dos papéis e ganhem as ruas...
José do Patrocínio
Sem dúvida. Agora que temos a propriedade do jornal O Abolicionista será mais fácil influenciar a opinião pública... Pensamos em fundar uma Confederação pela abolição do escravismo. A idéia é servirmos de modelo a outras publicações antiescravistas e arrecadar fundos para pagamento de cartas de alforria e pressionar as autoridades federais até que seja definitivamente abolida a escravidão no Brasil.
Princesa Isabel
Quero que saibam que podem contar comigo. Além da Lei do Ventre Livre que acabo de decretar – que é o que pude fazer até agora com o apoio do Visconde de Rio Branco - como prova do meu compromisso com a nossa causa faço questão de inaugurar as doações destinadas às irmandades para compra de cartas de alforria cedendo este conjunto de peças em ouro, brilhantes e esmeraldas para adorno feminino, de grande valor, que me foi presenteado pela minha mãe, a Imperatriz Tereza Cristina, na ocasião do meu baile de debutante.

        Entrega-lhe a caixa contendo um conjunto composto de tiara, pingentes e gargantilha.

José do Patrocínio
Em nome de todos os abolicionistas, agradeço-lhe a inestimável contribuição. (Abrindo a caixa)  Um tesouro, Alteza! Um tesouro...
Princesa Isabel
Peço-lhe discrição - para não causar falatório que venha atrapalhar os nossos planos.
José do Patrocínio
Certamente Princesa, o nome do doador será mantido em sigilo absoluto.
Princesa Isabel
Fui informada da existência de uma sociedade de mulheres negras ex-escravas em Cachoeira, no recôncavo baiano, cidade onde meu pai fez construir uma ponte de ferro sobre o Rio Maragojipe que a liga à Vila de São Félix em reconhecimento ao fundamental apoio do povo daquela região à sangrenta Campanha da Bahia nas lutas pela consolidação da Independência do país. Gostaria que a Irmandade da Boa Morte - que congrega estas senhoras negras libertas, que se encontram sinceramente engajadas na compra de cartas de alforria para libertar mulheres e homens escravizados - fosse especialmente contemplada com a maior parte da soma auferida com a venda da jóia que ora lhe confio.
José do Patrocínio
Seu desejo terá bom êxito, Alteza! Uma demonstração de sua generosidade.
Princesa Isabel
Mais que generosidade, é um dever das elites econômicas resgatar a dívida histórica para com o povo negro escravizado já há quase trezentos anos no Brasil. Você bem sabe que as objeções são grandes por parte dos latifundiários acostumados aos lucros fáceis e a toda sorte de abusos da condição de escravos dos negros retirados à força de África e aos que aqui foram nascidos na aviltante condição de filhos dessa “instituição injuriosa” – para fazer eco às palavras do nosso amigo Visconde de Rio Branco.
José do Patrocínio
Como costuma dizer o amigo Joaquim Nabuco, a causa abolicionista além de ser um dever ético é sobretudo uma questão política em razão de o escravismo afrontar o Direito Internacional, como faz saber abertamente o Ministério das Relações Exteriores da Inglaterra.
Princesa Isabel
As pressões dos ingleses conseguiram minar em parte as resistências do Partido Conservador – que apoiará a sanção do Decreto-Lei que acabo de encaminhar ao nosso Parlamento conforme asseverou-me o Visconde - que fará sua defesa pública de modo intransigente.

Escuro lento. Clarão. Escuro rápido. Ouve-se trecho majestoso contínuo logo após a abertura da ópera O Guarani de Carlos Gomes.

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