O espetáculo é a “publicação” em linguagem teatral da pesquisa das atrizes Aicha Marques e Maria Menezes orientadas pela professora, atriz e encendora Hebe Alves. A partir de estudos dos registros de atuações teatrais para o cinematógrafo - quando ainda não era possível adicionar áudio nem cores às imagens - as atrizes conseguem construir uma “escrita cênica” única, jamais vista nos palcos do planeta!
Tomando por base “variações de ritmo e outras qualidades de movimento” do “cinema mudo” bem como valendo-se de recursos narrativos próprios da linguagem áudio-visual foi possível alcançar uma sofisticada sintaxe cênica redimensionando e empoderando a semântica da linguagem teatral. Como adverte Hebe “não é cinema. É teatro”. Nós todos acrescentaríamos: Teatro de excelente qualidade Aisha, Hebe e Maria! Isso é indiscutível.
A peça é um bem de consumo raro de se encontrar nas prateleiras dos supermercados culturais da contemporaneidade no qual obras de arte findam por render-se, sem resistência, ao fetichismo mercantilista abdicando voluntariamente da sua autonomia. Uma luminosidade límpida e fascinante em meio ao apagão de idéias claras e contagiantes da pós-modernidade.
Um fenômeno que precisa ser registrado não apenas pela sensibilidade dos que poderão comparecer à celebração teatral de “corpo presente”. Urge portanto a necessidade de serem capturados os efeitos sobre a percepção e os sentidos que o espetáculo concretiza em seus fruidores permitindo a captura e fixação da sua instantaneidade, como ocorre na “recordação estimulada” utilizada por psicólogos e pedagogos a partir do áudio-vídeo registro de vivências únicas objetivando a reflexão do sujeito após suas interações sociais.
A transcrição da linguagem teatral para a linguagem áudio-visual (incapaz de substituir a sinestesia ou natureza “presencial” do fenômeno cênico) talvez seja o melhor meio de alcançar os enunciados não-verbais concretizados pelo método instrumento-e-resultado (processo-produto) ou pesquisa-ação dessas jovens mulheres de teatro pesquisadoras da performance na atuação teatral. Uma contribuição estética às artes cênicas, sem precedentes.
Aicha Marques e Maria Menezes |
As imagens das atrizes em ação dirão sem dúvida mais que qualquer palavra dita ou escrita sobre sobre sua impecável atuação mas não substituirão o poder da linguagem teatral vivenciada presencialmente durante a ocorrência do espetáculo; não substituirão jamais o prazer estético de acompanhar instantaneamente a comunicação cênica “fenomenal”.
Impressionante o condicionamento físico das atrizes ao longo dos 60 minutos de espetáculo. Algo só comparável ao desempenho de atletas em esportes de alta performance. Merece destacar aqui o rigor técnico minimalista de Aisha Marques e a atuação crítica sempre bem-humorada de Maria Menezes; também a direção atenta e experiente de Hebe que consegue alcançar o equilíbrio com uma abordagem “chapliniana” ou cômica à trágica condição humana, particularmente das mulheres e de seus sonhos na sociedade de consumo “falocêntrica”. Um luxo. Parabéns Teatro Baiano!
Fica o apelo para que a indústria cultural e o mecenato abriguem, alimentem e preservem a memória material e imaterial deste acontecimento único do teatro brasileiro na contemporaneidade. Um espetáculo que seguramente fascinará a Broadway-Hollywood, a Globo-Brasil, a Europa, o Japão, as Áfricas, as Américas e todos os cinéfilos do planeta; e causará grande admiração por parte de estudiosos contemporâneos da espetacularidade extra-cotidiana como Peter Brook, Eugênio Barba e também das pessoas comuns.
Pode-se dizer que o espetáculo é um aparte inserido no discurso populista vulgar opressor e monótono em favor da sobrevalorização de práticas artísticas ingênuas. Não existem culturas superiores ou inferiores. Existem culturas diferentes. Só a diversidade de práticas culturais permite a degustação do “biscoito fino” produzido artesanalmente pelas “meninas” da Bahia. Que possamos apreciar iniciativas como estas não apenas uma vez mas SEMPRE!
Salvador/BA, 03 de abril de 2010. Páscoa/Sábado de Aleluia.
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