Pode-se dizer sem receio que ludopedagogia é o campo de pesquisa e estudo da dimensão educativa das práticas lúdicas em geral e das intervenções pedagógicas que fazem uso de variadas modalidades de jogos no âmbito das ações culturais e da escolarização. Assim sendo, diferentes concepções sobre os fundamentos psicológicos das práticas lúdicas estão enredadas na trama de significações deste conceito e de seus usos pedagógicos.
Aqui, focalizaremos brevemente o valor educativo das práticas lúdicas conforme estas são entendidas segundo a perspectiva histórico-sociocultural de constituição do psiquismo humano.
A atividade lúdica na perspectiva histórico-sociocultural
Saberes da Psicologia sobre as semelhanças entre as práticas lúdicas de animais e humanos têm ressaltado seu valor educativo como “pré-exercício” de futuras competências a partir de uma ação instintiva supostamente oriunda de uma “energia excedente” (ânsia impulsiva) típica de organismos muito jovens ou de grupos reunidos para a prática de faculdades ociosas que antecipariam sua futura atividade “séria” (caça ou trabalho).
Acredita-se que o lúdico diz da “adequação” rápida de ações do organismo informada pelas peculiaridades de uma situação que impacta a sua conduta motriz como atividade orientadora dos seus modos de agir, ou seja, como “regulação psíquica do comportamento [sic] dos indivíduos inexperientes” – mas que absolutamente não está vinculada à real satisfação de demandas concretas do meio ambiente. O jogo (práticas lúdicas) seria uma atividade orientadora dos modos de agir do sujeito que ocorre desvinculada ou “alienada” do seu conteúdo substancial (fins utilitários) que gera alegria e bem estar (prazer funcional).
Ocorre que, na perspectiva histórico-sociocultural, a atividade psíquica no jogo - dos filhotes de animais e dos humanos - não deve ser equiparada, em razão de sua radical diferença. O jogo dos seres humanos acontece em um meio sociocultural historicamente (co)laborado que transforma qualitativamente o ambiente natural em razão do desenvolvimento da função significativa e do pensamento complexo que recorre ao uso e manejo competente de diferentes linguagens ou lexias.
Para os humanos “o jogo é uma atividade em que se reconstroem, sem fins utilitários diretos, as relações sociais” abrangendo uma ampla variedade de práticas que reproduzem fenômenos de sua vida cultural sem propósito prático real. No jogo se dá a reconstrução de uma atividade ressaltando-se seu conteúdo cultural: tarefas e normas das relações sociais encontram-se nele incrustradas.
A partir da natureza semiótica (simbólica) da atividade lúdica dos humanos é que a perspectiva histórico-sociocultural traz luz para o entendimento da dimensão educativa do jogo entre humanos e seu importante papel na IMPREGNAÇÃO CULTURAL do sujeito: seu efeito coletivizador. É através do brincar ou das interações lúdicas que se possibilita o aprendizado de regras e a sujeição das ações impulsivas à sua satisfação adiada pela via do prazer.
Apoiando-se nas idéias originais de Vigotskii a perspectiva histórico-sociocultural destaca a descoberta de que no jogo “a ação vem do significado da coisa e não da coisa.” O sujeito passa a agir no campo semasiológico, que não se encontra vinculado apenas ao campo visível das coisas e ações reais. Importante papel educativo teria a flexibilização de sentidos atribuídos às palavras, objetos e ações nas práticas lúdicas. A atividade lúdica criaria desse modo zonas de desenvolvimento proximais – ZDPs que só poderiam ser criadas a partir da interatividade (interação) entre sujeitos com níveis diferentes de imersão cultural.
As ZDPs são caracterizadas na perspectiva histórico-sociocultural como uma região próxima ao desenvolvimento já consolidado pelo sujeito situada no limiar entre aquilo que a pessoa já é capaz de fazer sozinha, sem a ajuda de outros, e de suas possibilidades de ação com o auxílio de membros mais experientes no uso de artefatos culturais do meio social em que ela se encontra aconchegada.
Através das ZDPs seria ampliado o APRENDIZADO dos sujeitos gerando consequentemente seu desenvolvimento. Nesse espaço de alteração do sentido ou orientação da atividade da pessoa no jogo, novos conhecimentos estão em processo de elaboração mediados por artefatos culturais, instrumentos e signos apropriados pela interação com interlocutores mais familiarizados com a imersão em um contexto cultural que exige o manejo de sofisticadas ferramentas para o trabalho e comunicação. Desse modo podem ser consolidados e ou ressignificados novos saberes ludicamente.
Em resumo, a prática lúdica ou jogo é uma atividade orientadora dos modos de agir que ocorre desvinculada ou “alienada” do seu conteúdo substancial (fins utilitários) gerando alegria e bem estar (prazer funcional). Nesse espaço de ressignificação da atividade da pessoa, novos conhecimentos estão em processo de elaboração e, frente à mediação de artefatos culturais potencializada pela interação, podem vir a ser consolidados e (co)laborados. Nisso reside fundamentalmente o valor pedagógico do jogo ou das práticas lúdicas na perspectiva histórico-sociocultural.
Prof. Ricardo Ottoni Vaz Japiassu
Cientista social-pesquisador
Doutor em Educação e Psicologia pela Faculdade de Educação da USP
Mestre em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da USP
Licenciado e Bacharel em Teatro pela Escola de Teatro da UFBa
Professor titular aposentado da UNEB
OBSERVATÓRIO DO DESENVOLVIMENTO CULTURAL
Ciências Sociais Aplicadas – Estudos e consultoria
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