sábado, 14 de agosto de 2010

DO TEATRO GAY AO TEATRO MIX: A atitude ubunto e a cena viada na contemporaneidade

O travestismo no teatro ocidental era tradição cênica hegemônica na Antiguidade Clássica e perdurou até o início da Renascença. Só com as trupes errantes de saltimbancos em feiras, praças e palácios e de grupos de Commedia Del’Arte no final da Idade Média e cada vez mais durante o Neoclassicismo as mulheres conquistam pouco a pouco o direito de subirem aos palcos para atuarem os papéis femininos – uma prerrogativa até então exclusiva dos “damas-galãs” (atores especializados em performarem papéis femininos).


Imagine-se a Jocasta de Sófocles (Édipo Rei) e a Julieta de Shakespeare (Romeu e Julieta) “encarnadas” por homens travestidos. Parece-nos, na contemporaneidade, inconcebível que tragédias gregas e renascentistas pudessem ser apresentadas exclusivamente por homens sem provocarem riso. Mas eram assim que elas eram de fato encenadas. Isso testemunha a natureza histórico-sociocultural das práticas de encenação e interpretação teatrais - no presente totalmente subjugadas às convenções hegemônicas do realismo-naturalismo heteronormativo e seus semblantes.

Ao final do século XX o travestismo volta aos palcos restringindo-se apenas à cena viada (práticas teatrais do ativismo gay) e dramatúrgica (como “personagem” em textos dramáticos).



O teatro gay e mix na AMERICA

“Nos anos sessenta, as atitudes de ‘deixar rolar’ (laissez faire) concernentes ao estilo de vida se tornaram mais comuns. Alguns homossexuais decidiram não mais esconder sua orientação sexual e um pequeno número de grupos engajaram-se no desenvolvimento da aceitação de si mesmos e de seu status minoritário no sentido de serem aceitos pela maioria das pessoas. Os apelos dos grupos de teatro de ativistas gays por mudanças sociais de atitude trilharam dois caminhos cênicoestéticos: um caminho foi o travestismo que criava confusão e ambiguidade dos papeis sociais e enfatizava o ridículo das atitudes sociais urbanas (de rua) em relação aos papéis sexuais. Isso focalizou enfaticamente a distinção entre gêneros e as diferenças de orientação sexual privilegiando a subjetividade [Teatro Gay]. O outro caminho foi o de revelar os problemas dos homossexuais em uma sociedade regida pela heteronormatividade e seus semblantes [Teatro Mix].

Nos Estados Unidos da América The Play House of the Riciculous (A casa de festa/jogos [boate/danceteria] dos Ridículos) criada em Nova Iorque em 1965 pelo diretor e artista performático John Vaccaro ao lado do dramaturgo Ronald Tavel foi o primeiro desses grupos a aderir ao transformismo em suas atuações cênicas. Paralelamente ao abandono do texto emergiam paródias de filmes antigos, e atuações frenéticas que investiam em grande variedade de componentes escatológicos e sexuais reduzindo política, sociedade, religião e sexo ao absurdo.

[...] Em 1967, Charles Ludlam, ator do grupo de Vaccaro, criou a Ridiculous Theatrical Company (Companhia Teatral dos Ridículos) [...] [porem] o grupo gay mais exuberante foi o Cockettes que floreceu em São Francisco durante as comemorações do ano novo de 1969.

[...] Nos anos 70 muitos gays e feministas passaram a considerar o travestismo como atitude politicamente incorreta. A performance transformista era vista como ofensiva e depreciadora da mulher e do homem gay por não lidar satisfatoriamente com a problemática dos homossexuais. Novas companhias se formaram para abordarem de outro modo as questões sociais da homossexualidade.

Surge o The Gay Theatre Colletive (O Teatro Gay Coletivo ou O Coletivo Gay de Teatro) [Teatro Mix] em 1976 em São Francisco, inicialmente formado só por homens gays mas posteriormente incluindo mulheres lésbicas.”

A atitude ubunto da cena viada no Brasil

A extensa transcrição acima de fragmentos do capítulo terceiro do livro Teatro Alternativo Norte-Americano (American Alternative Theater) de Theodor Shank intitulado Teatro de Mudança Social (Theater of Social Change) permite-nos identificar as origens do que se denomina Teatro Gay e Teatro Mix, nas sociedades ocidentais, particularmente na sociedade norte-americana a partir de meados dos anos sessenta.

No Brasil, o teatro gay tornou-se muito popular a partir dos anos 70 com os espetáculos do grupo Dzi Croquettes liderado pelo bailarino norte-americano Leny Dale. Na Bahia, sobretudo a partir de meados dos anos 70, Álvaro Guimarães (Belos & Malditos/Teatro Vila Velha), Eduardo Cabus (Teatro Gamboa), Leonel Matos (Boite Caverna), Di Paula (Boite Holmes), Luciano Diniz (Choque/Sala do Coro do TCA) e Paulo Emanuel (Jornalista/Correio da Bahia) entre outros foram pioneiros em defenderem o ativismo gay no teatro baiano. Atualmente o grupo soteropolitano dedicado ao transformismo em cena de maior projeção é a Companhia Baiana de Patifaria (A Bofetada, Noviças Rebeldes e Siricotico).


Rodrigo Camilo em cena
Quem tem medo de Liza Minelli?
Evidentemente além dos nomes relacionados acima outros dramaturgos e encenadores baianos reservaram lugar de destaque para a performance gay ou para a abordagem da problemática da homossexualidade. Poder-se-ia elencar aqui rapidamente Deolindo Checcucci e Fernando Noya (Abre Mais!), Marcio Meirelles-Genet (As Criadas), Fernando Guerreiro (Bodas de Sangue, Bent, Equus, O Balcão), Vieira Neto (Tia Gaby), Ricardo Ottoni (Tabu, Quem tem medo de Liza Minelli?) apenas como ilustração da pletora de práticas teatrais na Bahia ocupadas com o questionamento dos referenciais heteronormativos. Merecem ser lembradas ainda as inesquecíveis performances cenicamente impactantes e bizarras de William Summers em espetáculos vários nos quais apresentava uma inconfundível e customizada máscara hilária-irreverente - agigantada por sua obesidade natural e pelo exagero estético originalíssimo.

Urgentes considerações

Mas, pode-se falar em Teatro Gay no Brasil? E de Teatro Mix? Desde quando? Quais as implicações cênicoestéticas desta(s) modalidade(s) de atuação teatral? Existe mesmo o que alguns denominam na contemporaneidade neste pais arte viada, literatura viada, dramaturgia viada, teatro viado, cinema viado? Estas consignas chocam? A escritura da palavra “viado” com “i” é antipedagógica e/ou ofensiva? O que ela busca referir? O que se sabe, hoje, sobre os desdobramentos e impactos cênicoestéticos do Teatro Gay e Mix norte-americanos nas práticas teatrais e dramatúrgicas na contemporaneidade no Brasil? Quais as implicações cenicoestéticas da atitude ubunto (valorização da diversidade sociocultural) nos aspectos da cena viada no país?

Estas questões permanecem sem dúvida constituindo um “território” insuficientemente explorado pela pesquisa rigorosa ou acadêmica do teatro no Brasil e na Bahia. Talvez seja necessário políticas públicas para apoiar projetos de estudo e investigação do assunto bem como grupos voltados para a experimentação cênica das implicações estéticas da cena viada.

Espero honestamente que o que se diz aqui possa encorajar e empoderar o desejo excindido de muitos oprimidos pelo modelo estético sexista heteronormativo hegemônico.

Pela liberdade de expressão teatral das sexualidades várias: Ubunto!

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