sábado, 4 de junho de 2011

TUMBEIRO MALÊ ( 14 ) - O continente


PARTE III – O CONTINENTE

(1) PRIMEIRA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

        Acampamento militar independentista nas campinas de Pirajá. Galego, os dois malês e os alabês angolanos estão acocorados e se alimentam descascando e chupando cana. Um dos angolanos descasca uma cana com os dentes.

Manuel Galego
Êita neguinho bom de dente!
Chico (Segundo alabê angolano)
É o Zé-Boca!
Tôin (Terceiro alabê angolano)
É o famoso Boca de Piranha!

        Todos gargalham. Inclusive os malês.

Manuel Galego
(Com galhofa) Tá morta-fome Boca?

        Zé-Boca (Primeiro alabê angolano) com um pedaço de cana entre os dentes responde afirmativamente com a cabeça.

Manuel Galego
O jeito é a gente se arranjar com o que tem no mato daqui!
Chico
Será que o batalhão de encourados de Dona Maria vai demorar muito ainda pra chegar?
Manuel Galego
Penso que não.  Mas a gente só vai poder seguir para Salvador junto com as tropas dela. A capital da Província está sitiada e os portugueses estão derrubando qualquer um que se aproxime das portas da cidade!
Tôin
Êita! Danou-se o nosso destino.
Manuel Galego
Nada! (Mudando o tom) Tá com medo de pegar no facão nego Tôin?
Tôin
O único facão que eu não tenho medo de pegar é esse aqui (Sacoleja o pênis com orgulho e galhofa)
Zé-Boca
(Ridicularizando-o e esfregando-se no traseiro de Tôin) E esse meu canivete, Tôin, cê pega? (Sai correndo antes que Tôin possa ter alguma reação)

        Todos gargalham irreverentemente.

Tôin
(Em perseguição a Zé-Boca) Ôxe, ôxe, ôxe! Casca fora nego “fei”. Tá me estranhando?
Zé-Boca
(Pirraçando-o) A neguinha retou-se!

       
Tôin pega um pedaço de cana e corre atrás de Zé-Boca.

Tôin
Deixa eu te pegar nego qu’eu vou  lhe mostar a neguinha, moleque! Enfio essa cana todinha no seu cu duro, filho d’uma égua!

        Zé-Boca dança o kuduro desafiadoramente para Tôin.

Zé-Boca
Aí que meda!

        Tôin corre atrás de Zé-Boca em um divertido jogo de picula que deriva para luta romana na areia, os dois se agarrando e rolando pelo chão prazeirosamente.

Barach Osama (Primeiro Guerrilheiro Malê)
(Para Manuel Galego) Quando nós vai (Faz gesto de seguir adiante) Salvador?
Barach Husseim (Segundo Guerrilheiro Malê)
Salvador. Nós precisa chegar!
Manuel Galego
Calma. Não tem como chegar a Salvador ainda negão. (Para Chico) Chico! Explica pra eles. Vocês negros se entendem melhor.

        Chico pronuncia uma ou outra palavra em ioruba e complementa sua comunicação com linguagem gestual. Zé-Boca e Tôin se aproximam ofegantes após o término da brincadeira.

Barach Osama
Guerra?! Salvador?
Barach Husseim
(Revelando por atitude que compreende) Sim. (Para Barach Osama) Guerra! (Diz expressão em ioruba e árabe) lá... Salvador
Barach Osama
Nossa guerra?
Barach Husseim
Não. Guerra de branco.

        Toque de corneta.



(2) SEGUNDA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

        Movimentação dos acampados com rumor crescente. Um grupo de marujos adentra a cena.

Chico
(P/ Manuel Galego) É ela?
Manuel Galego
Não. São marujos! Vou ver se conheço algum deles...

        Aproxima-se do grupo de recém-chegados ao acampamento e descobre Zulu entre eles.

Manuel Galego
Zulu?!
Zulu
Galego?!

        Abraçam-se forte e pulam juntos de alegria.
 
Manuel Galego
Fala cu-de-ouro! Como é que vc chegou aqui negão? Cadê meu capitão?
Zulu
E rapaz... É uma longa história...
Manuel Galego
O Maria veio com o grupo?
Zulu
Não.
Manuel Galego
Morreu?
Zulu
Se morreu, não vi, não soube. A última vez que estive com ele estava vivo. Ainda na nau do Lobo do Mar.
Manuel Galego
E o capitão Pedro Sá?
Zulu
Foi levado pelos guaranis.
Manuel Galego
Como é que é? Conta isso melhor...
Zulu
Seguinte: Depois que vocês partiram o galeão foi tomado de assalto por canoeiros guaranis que fizeram os sobreviventes do ataque reféns.
Manuel Galego
Conta tudo vai!
Zulu
Antes de naufragar o galeão ficou no meio de uma batalha de flechas entre selvagens simpatizantes de Portugal e os coligados do comodoro escocês...
Manuel Galego
Qual grupo venceu a batalha?
Zulu
Os guaranis à mando do Lobo do Mar. Quem sobreviveu à chuva de flechas foi feito prisioneiro. Maria, a missionária inglesa e eu fomos levados para embarcar na nau do escocês. O capitão, a rainha negra e suas aias seguiram para a aldeia guarani junto com parte da carga saqueada do galeão. A maior parte da pólvora e das armas de fogo seguiu para a nau do Lobo. A imagem de São Sebastião, e o restante da carga de pólvora e o carregamento de seda seguiu com os guaranis para a ilha. Depois disso, não vi mais o capitão nem soube dele.
Manuel Galego
E Maria?
Zulu
Maria foi entregue em terra à Dona Maria Felipa – uma negra comandante de um batalhão de encourados na sede provisória da Província, no recôncavo continental, em Cachoeira. A missionária inglesa desceu ali para seguir por terra até o Rio de Janeiro. O restante da tripulação do galeão veio comigo na nau do escocês pela contracosta da ilha até chegarmos aqui, onde parte desembarcou e outra permaneceu a bordo para combater em alto mar e nas águas da baía junto com a fragata do comodoro mercenário francês Pedro Labatut e ao lado de outros navios da marinha do Império brasileiro.
Manuel Galego
Então o capitão e Maria estão vivos!
Zulu
Não sei. Talvez.
Manuel Galego
Por que Maria foi mesmo entregue à comandante negra?
Zulu
Pelo que eu consegui saber porque iria treinar alguns guerreiros selvagens no uso do chicote em Itaparica, na ilha.
Manuel Galego
E onde fica a aldeia guarani para onde foi levado o capitão?
Zulu
Não sei. Acho que na ilha...
Manuel Galego
Estamos aguardando a chegada de Dona Maria Quitéria e seu batalhão e outras tropas que aqui se reunirão para marcharem até a capital da Província que está sitiada...
Zulu
Ouvir dizer que ela é uma comandante muito corajosa e respeitada. Prometeram nossa alforria em troca de nossa adesão às tropas... Estou quebrado. Dizem que vão dar pão e alimento. Se você ainda não fez a entrega está com a minha barra de ouro...
Manuel Galego
Parte do seu ouro já gastei para trazer a encomenda até aqui. Sobrou um pouco apenas para concretizar a entrega. Quando finalizar o transporte das peças até os destinatários devo receber a paga pelo negócio. Fiquei de encontrar com o capitão em Salvador, no cais do porto, perto do cabaré de Maria das Cobras...
Zulu
Posso me juntar a vocês?
Manuel Galego
Claro. Assim que receber a paga lhe devolvo a sua parte... Se me ajudar a levar a encomenda em segurança até seus destinatários...
Zulu
(Exultante de felicidade) Valeu “Galeguin”! Negócio fechado.
Manuel Galego
Agora é só esperar a chegada das tropas que ficaram de vir juntar-se a nós e seguirmos para a capital da Província. Daí, quando entrarmos na cidade desertamos e vamos tratar da nossa tarefa.
Zulu
Tomara que não demorem muito a chegar!
        
[Pode ocorrer episódios de ensino da doutrina islâmica, da escrita e leitura aos negros por parte dos guerrilheiros Malê a partir de pesquisas e improvisações do elenco]

        Soam cornetas e ouve-se o galope da cavalaria. Maria Quitéria entra rápida e destemida cercada de guarda-costas e alguns porta estandartes do Império.

Maria Quitéria
Combatentes! Chegou a hora de marcharmos juntos sobre a cidade. O General Madeira de Melo ordenou que partíssemos sem demora. Os portugueses estão enfraquecidos porque são atacados pelo mar pela marinha imperial, pelo sul do continente por nós e pelo litoral norte pelos batalhões de negros e tupis-cariris a serviço do Visconde de Mauá. Entendido soldados?
Coro de combatentes
Sim senhora!
Maria Quitéria
Há armas e munição nas carroças para todos. À luta homens! Avante!

        Rumor, gritos eufóricos e correria dos acampados para pegarem as armas. Maria Quitéria deixa a cena confiante. Um desfile de muitos homens armados atravessa a cena ao som do Hino ao Senhor do Bonfim em seguida a Maria Quitéria. Escurecimento.

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