A retomada de propostas para atividade com a linguagem teatral sinaliza caminhos a serem percorridos pelo(a) professor(a) concretizando a superação da dicotomia processo-produto que tem caracterizado as propostas para o desenvolvimento da capacidade estética na escolarização. A avaliação do desempenho dos educandos ocorre prospectivamente quando se recorre didaticamente ao sistema de jogos teatrais. Para isso, deve-se ter em mente a apropriação continuada das regras das propostas apresentadas aos escolares e de sua performance cênica não se restringindo a “medir” às conquistas já consolidadas por parte do grupo e por cada um.
Esta visão prospectiva da avaliação solicita no entanto uma intervenção responsável do coordenador de jogos no sentido de estar desafiando os jogadores e o grupo a solucionarem problemas de atuação cada vez mais complicados.
Quanto mais se joga, melhor se joga e mais se quer jogar. O entendimento da provisoriedade dos resultados obtidos ao longo do processo de trabalho liberta os professores e os escolares da valorização excessiva do desempenho em etapas da marcha na aquisição, domínio e fluência da linguagem teatral.
Espero ter demonstrado e destacado a relevância de alguns procedimentos metodológicos absolutamente necessários à didática do sistema de jogos: (1) delimitação da área de jogo e da área de observação; (2) divisão do grupo em equipes; (3) explicitação do foco da atividade proposta e de suas regras; (4) revezamento das equipes na área de jogo; (5) instruções durante a apresentação das equipes na área de jogo; (6) avaliação coletiva e autoavaliação logo após a apresentação de uma equipe na área de jogo; (7) formação do círculo ou roda de discussão e memória; (8) registros multiléxicos para elaboração de portifólio da trajetória do grupo e de cada um dos seus membros.
Estes procedimentos são fundamentais para o pleno funcionamento do método lúdico para o aprendizadoensinado da linguagem teatral.[1]
A promoção de avanços no desenvolvimento da capacidade estética cênica da criança pré-escolar com o uso do método proposto e exposto aqui solicita rigorosa vigilância aos seus fundamentos e operacionalidade conforme os relatos apresentados.
Vejamos a seguir características cognitivas das crianças acompanhadas que foram reveladas com a prática regular do sistema de jogos. Passaremos a expor ocorrências ao longo da proposição e prática do jogo Cacique, introduzido na terceira sessão de trabalho do grupo:
Claudia – A brincadeira chama-se Cacique. Quem sabe o que é um cacique?
Jéssica (6 anos/ 3º estágio) – Eu não!
Bruna (5 anos/ 2º estágio) – Eu não.
Claudia – O que é cacique?
Luis Ramon (6 anos/ 3º estágio) – É o chefe do índio... É o chefe dos índios...
Claudia lhes explica a proposta para atividade cênica lúdica.
Cacique
Pré-condição: plateia de jogadores
Foco: Agir como “detetive” mantendo as regras originais da atividade
Descrição: Divide-se o grupo em equipes. Define-se a ordem de apresentação das equipes na área de jogo. Decide-se por sorteio quem será, primeiramente, o “detetive” na equipe. Pede-se ao “detetive” que retire-se do ambiente por alguns instantes. Decide-se que será o “cacique”. A equipe acomoda-se em círculo na área de jogo com todos os jogadores voltados para o centro da roda. O “cacique” inicia, sem palavras, um movimento que deve ser seguido por todos os participantes da equipe. Pede-se ao “detetive” que retorne ao ambiente com os jogadores executando o primeiro movimento sugerido pelo “cacique”. O “cacique” deverá propor, dissimuladamente, novos movimentos a serem seguidos pelos membros do grupo. Os membros da equipe devem evitar “entregar” ao detetive quem é o “cacique” no grupo. Se e quando o “detetive” descobrir o “cacique” deve apontá-lo e tomar o seu lugar na roda. Instantaneamente o sujeito no papel de “cacique” toma o papel de “detetive” e o jogo deve prosseguir sem interrupções. Um novo “cacique” deve emergir espontaneamente com aquiescência não verbal dos membros do grupo e assim segue a atividade a ter ser interrompida pelo coordenador dos trabalhos.
Instruções do coordenador(a) durante as interações na área de jogo: Como age um detetive? Como anda e se move um detetive? O que pensa um detetive? Tentem não revelar ao detetive quem é o “cacique”. Busquem seguir o “cacique” sem olhar para ele. Quando o detetive descobrir quem é o “cacique” deve apontar para ele. Se o detetive acertar toma o lugar do cacique na roda.
ADVERTÊNCIA:
Adequação do jogo à pré-escolares: Os novos “detetives” devem deixar o ambiente para (a) coordenador(a) combinar com as crianças quem será o novo “cacique”.
Observar: As crianças conseguem seguir instantaneamente as mudanças de movimento do cacique? Os movimentos são os mesmos dos feitos pelo cacique? Como age a criança no papel de detetive? Sua indicação do cacique é por reação caótica (tentativa e erro) ou por “pistas” fornecidas a partir da observação atenta dos membros do grupo?
Avaliação coletiva e autoavaliação: Deve ser conduzida logo após a apresentação de uma equipe na área de jogo. As perguntas devem ser formuladas inicialmente aos jogadores que estiveram na área de observação e só então aos que atuaram na área de jogo.
1. A equipe cumpriu as regras da atividade?
2. Quais as regras deste jogo?
3. Os jogadores que atuaram com detetive, agiram como detetive?
4. Os membros da equipe seguiam corretamente os movimentos do cacique?
5. É difícil descobrir quem é o cacique neste jogo?
6. Como se descobre quem é o cacique?
7. O que é necessário para o detetive saber quem é o cacique?
Em seguida à exposição das regras e explicitação do foco da atividade proposta, a professora sugere que os próprios integrantes das equipes conduzam uma parlenda de escolha para seleção do jogador que será, primeiramente, em cada uma delas, o “detetive”.
Constataram-se, durante a atividade cênica das equipes na área de jogo, diferentes procedimentos utilizados pelas crianças para descoberta do jogador-cacique. Luis Ramon (6 anos/3º estágio), por exemplo, entra na sala, posiciona-se no centro da roda e observa atentamente os jogadores em silêncio girando sobre os próprios pés. Isso leva-o a descobrir, rapidamente, quem se encontra no papel de cacique; Bianca (6 anos/2º estágio) também descobre logo o jogador-cacique usando os mesmos procedimentos de Ramon; Bruna (5 anos/2º estágio) embora demore mais tempo que os outros dois colegas busca visivelmente, assim como eles, pistas fornecidas involuntariamente pelos integrantes da equipe.
Já Gilvan (5 anos/2º estágio) apresenta grande dificuldade em descobrir quem é o jogador-cacique. Ele parece eleger como “estratégia” apontar aleatoriamente, as crianças na roda; Raphael (4 anos/ 1º estágio) usa procedimento semelhante ao de Gilvan. Edvana (5 anos/ 2º estágio) e Jéssica (6 anos/3º estágio) optam também pela reação caótica (tentativa e erro).
Wellington (6 anos/3º estágio) no entanto, surpreendentemente, entra na sala apontando o colega no papel de cacique. Isso não nos permite saber se sua descoberta deve-se à reação caótica, à observação atenta do grupo ou ao uso de outros recursos como a escuta “sorrateira” atrás da porta da sala ou observação “dissimulada” pelo buraco da fechadura, por exemplo.
Observe-se o trecho abaixo no qual se encontram transcritas as interações verbais na roda de discussão que abriu os trabalhos da sessão subsequente em que ocorria a comemoração (rememoração) do encontro anterior (apresentação do “protocolo” ou registro oral dos trabalhos desenvolvidos).
Claudia – Na sessão que não veio nem a Camila nem o Gutierre, quais foram as brincadeiras? (Para Edvana) Você lembra?
Jéssica (6 anos/3º estágio) – Eu lembro!
Luis Ramon (6 anos/ 3 º estágio) – Eu lembro.
Claudia – Qual?
Jéssica (6 anos/3º estágio) – Foi... foi do gato e do rato... e a gente...
Claudia – Foi do gato e do rato? Qual que foi?
Gutierre (4 anos/1º estágio) – Foi do gato e do rato mesmo!
Wellington (6 anos/3º estágio) – Não! Foi da... do rato... e ai eu pegava o...
Jéssica (6 anos/3º estágio) – Não! Foi daquele negócio que tinha o detetive... e tinha o índio...
Wellington (6 anos/3º estágio) – É!
Claudia – Que era o... [Encorajando-os a recordarem do nome do jogo]
As crianças não respondem. Demonstram não terem compreendido o que a professora lhes solicitava ou não se recordarem da denominação da atividade.
Claudia – (Tentando auxiliá-los) Ca...?
Bruna (5 anos/2º estágio) – (Arriscando um palpite) Cachorro?!
Claudia – Cacique... Quem lembra da brincadeira do cacique?
Quase todos – (Em coro) Eu!
Edvana (5 anos/2º estágio), Jéssica (6 anos/3º estágio), Wellington (6 anos/3º estágio), Luis Ramon (6 anos/3º estágio) e Bruna (5 anos/2º estágio) levantam vigorosamente o braço com o dedo indicador em riste.
Claudia – Nesta brincadeira quem não tava [presente] era a Camila e o Gutierre. (Para Marcela) Você também não tava, né, Marcela?
Marcela (4 anos/1º estágio) move lenta e negativamente a cabeça confirmando não ter comparecido à terceira sessão.
Jéssica (6 anos/3º estágio) – (Levantando-se subitamente) Ô professora?!
Claudia – Vamos contar para eles como que era essa brincadeira?
Alguns – (jogralesca e automatizadamente) Vamos!
Jéssica (6 anos/3º estágio) – Foi assim: uma pessoa entrava... (Apontando para a porta da sala) Aí, a outra abria a porta... Aí, entrava. Aí, apontava para a pessoa que era o cacique.
Bruna (5 anos/2º estágio) – É: descobria [quem era o cacique], e apontava a mão pra pessoa que era o cacique. Aí, quem acertou, é... ele (Apontando Luis Ramon).
Claudia – Isso. E como é que a gente tinha que fazer para descobrir quem era o cacique?
Luis Ramon (6 anos/3º estágio) – A gente tinha que... tinha que esperar... esperar o cacique mudar pra... descobrir.
Claudia – Qual a outra forma que a gente poderia descobrir o cacique?
Edvana (6 anos/2º estágio) – (Apontando para Luis Ramon) Era ele!
Claudia – (Surpreendida pela resposta de Edvana) Anh?
Edvana (6 anos/2º estágio) – Era ele...
Claudia – E como que a gente ia descobrir quem era a criança que era o cacique?
Edvana (6 anos/2º estágio) – Porque a gente semos criança...
Claudia – Como vocês faziam para descobrir quem era o cacique? (Pausa) Ramon descobriu dessa maneira, né? Que ele... que ele esperava o cacique mudar o movimento e aí, descobria. Mas teve outras crianças que descobriram de outra maneira...
Jéssica (6 anos/3º estágio) – Eu descobri!
Claudia – Como que você descobriu?
Jéssica (6 anos/3º estágio) – Sozinha...
Claudia – Como que era “sozinha”?
Jéssica (6 anos/3º estágio) – Falava quem era...
Claudia – Falava... Aí, se não era, o que você fazia?
Jéssica (6 anos/3º estágio) – Eu ia dizer até descobrir...
Animar uma roda de conversas com crianças de 4 a 6 anos é uma tarefa que exige muita habilidade por parte do(a) professor(a). Sabe-se que, na perspectiva do desenvolvimento cultural, durante a ontogênese, o significado de uma palavra não necessariamente coincide com sua referência objetal podendo adquirir sentidos vários em uma interação verbal entre sujeitos com diferentes vivências culturais e experiência no manejo dos signos linguísticos.
Embora o aspecto vocalizado ou sonoro da palavra (aspecto fásico) coincida, seu significado (aspecto semântico) pode diferir.[2]
Esta não coincidência entre o aspecto fásico e semântico de uma palavra fica bastante evidente quando Jéssica afirma ter descoberto o cacique “sozinha”. Note-se como a professora, habilmente, sonda o que a criança pretende dizer com aquela palavra: “Como que era sozinha?”
Observe-se que só após novos questionamentos por parte da professora o sentido do enunciado de Jéssica é obtido; “Eu ia dizer até descobrir...” Em outros termos: a criança finalmente informa para a professora ter eleito o método da reação caótica (tentativa e erro) como estratégia para descoberta de quem era o cacique na equipe. Toda uma frase e justificativa condensa-se na palavra “sozinha”.
Buscou-se ilustrar com o episódio relatado acima como a ludopedagogia do sistema de jogos pode ser um recurso eficaz para sondar e revelar aspectos cognitivos dos escolares.
A adaptação de jogos tradicionais infantis à moldura didática dos jogos teatrais permite uma intervenção pedagógica que valoriza a escuta verbal e não verbal do que os sujeitos têm a dizer fornecendo pistas preciosas aos educadores das modalidades de pensamento com as quais a criança operam, dos seu nível de metacognição através da observação atenta das estratégias que elas utilizam na solução de desafios cênicos e na expressão verbal de seu pensamento.
Y JAPIASSU, Ricardo (2003) A criança pré-escolar e o sistema de jogos teatrais. In Jogos teatrais na pré-escola: o desenvolvimento da capacidade estética na educação infantil. Faculdade de Educação da USP. São Paulo. Cap.4, pp.117-123 [Tese de doutorado não publicada]
[1] O detalhamento dos procedimentos didáticos necessários à implementação do método proposto encontra-se em JAPIASSU, Ricardo (2003) Metodologia do ensino de teatro, Campinas: Papirus.
[2] Vygotsky, L. S. (2001) A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, p. 410.
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