Um desfile de muitos homens armados atravessa a cena ao som do Hino ao Senhor do Bonfim em seguida a Maria Quitéria. Escurecimento.
(3) TERCEIRA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS
Em meio ao carnaval da vitória, Manuel Galego e Zulu abrem caminho na multidão. Um grupo de homens joga futebol com a cabeça de um soldado português. Gritos e molecagem. Xingamentos ao crânio do sacrificado.
Manuel Galego
Venha, Zulu. Por aqui.
Zulu
Deixa eu dar um chute na cabeça desse branco fodido!
Manuel Galego
Vai, negro, vai. Chuta a cabeça do seu algoz!
Zulu dá um chute no crânio e volta para seguir com Manuel Galego. A algazarra se afasta e retira-se de cena.
Manuel Galego
Aqui está a sua parte como combinado!
Zulu
Beleza!
Manuel Galego
Quer seguir comigo até o cais?
Zulu
Pra gastar com a mulherada?! Não.
Manuel Galego
Vou tentar encontrar o capitão.
Zulu
Não quero mais morar no mar... Vou tentar abrir um negócio qualquer em terra mesmo.
Manuel Galego
Com a minha parte quero comprar um saveiro usado.
Zulu
Pra quê?
Manuel Galego
Transporte comercial de abastecimento entre Salvador e Cachoeira. Navegação só dentro da baía de todos os santos... Vamo?
Zulu
Isso dá dinheiro?
Manuel Galego
Deve dar... Vem rapaz, quero que você veja os saveiros. Não precisa decidir agora. Vou precisar de um assistente. Você sabe mergulhar? Apineia?
Zulu
Nunca treinei não...
Manuel Galego
Já estamos quase chegando ao cabaré de Maria das Cobras... É só terminar de descer esta ladeira...
Deixam a cena abraçados amistosamente. Escuro.
(4) QUARTA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS
Ouve-se ruído de garrafas quebradas, bancos derrubados e gritos de mulheres em pânico.
Marujo Bêbado
(Com o gargalo de uma garrafa nas mãos ameaça cortar o pescoço de Maria das Cobras) Se alguém chegar junto corto o pescoço desta vadia!
Curiosos e mulheres desfrutáveis assistem temerosos o desenrolar dos acontecimentos. Antônio Maria aproxima-se com o chicote desembainhado usando tapa-olho.
Antônio Maria
Largue Dona Maria, vá!
Marujo Bêbado
Para trás, viado!
Antônio Maria
(Estalando o chicote no chão) Vá, largue ela logo. Se não largar por bem...
Marujo Bêbado
Vai fazer o quê caolho?!
Maria habilmente o desarma com um só golpe e enrola o chicote em torno do seu pescoço sufocando-o.
Antônio Maria
Solte ela, vagabundo! Vá, solte...
O Marujo bêbado solta Maria das Cobras.
Antônio Maria
A senhora tá bem Dona Maria?
Maria das Cobras
Sim, Antônio. Obrigado.
Antônio Maria
Meninas, amarrem esse baiacu fedido! Fechem a boca dele com pano.
Algumas mulhers desfrutáveis correm para amarrar o bêbado, outras amparam Maria das cobras.
Antônio Maria
(Jogando o marujo bêbado rendido ao solo) O que a senhora quer que eu faça com ele Dona Maria?
Maria das Cobras
Me tragam um copo com água!
Manuel Galego e Zulu chegam ao cabaré.
Manuel Galego
Maria?!
Maria das Cobras e Antônio Maria se voltam para ele.
Maria das Cobras
(Para Manuel Galego) Mais respeito! Dona Maria. (Abre o leque e abana-se afetadamente) Não lhe dei esta ousadia!
Antônio Maria
(Para Maria das Cobras) É comigo Dona Maria... (Para Galego) Galego?!
Correm e abraçam-se longa e festivamente.
Manuel Galego
O que aconteceu com seu olho esquerdo?
Antônio Maria
Uma flecha. Quase morro. Fui salvo pela fé em São Sebastião e pela caridade de Dona Maria das Cobras...
Manuel Galego
(Respeitosamente dirigindo-se a Maria das Cobras) Senhora Dona Maria, Manuel Galego, seu criado.
Maria das Cobras
(Para as meninas do cabaré) Levem o “peixe podre” pra calçada e tirem toda a roupa dele. Larguem ele nu, lá, amarrado, com o traseiro pra cima; e enfiem um sabugo de milho no rabo dele - pra ser seviciado pela molecada donzela viciada no troca-troca, nas cabras e nas porcas... Pra ele sentir a dor que a gente é obrigada as vezes sofrer tendo que satisfazer a tara desses “traste ruim”! (Para Antônio Maria, Galego e Zulu) Fiquem a vontade. (Para as mulheres desfrutáveis batendo palmas) Vamos meninas, vamos se arrumando que a noite tá chegando e tem festa ainda hoje em comemoração à vitória sobre os portugueses, acabou o bafafá!
Maria das cobras e as mulheres deixam a cena.
Manuel Galego
Doeu?
Antônio Maria
O quê?
Manuel Galego
(Tocando-lhe com carinho a face) A flechada...
Antônio Maria
Muito. Mas Nossa Senhora da Boa Esperança e São Sebastião me valeram e aqui ainda estou, embora sem um olho.
Manuel Galego
Você e suas crendices! Tu teve é sorte homem. Onde estão suas argolas de prata?
Antônio Maria
Estou usando penas de pássaros nas orelhas agora... Fica mais fácil indentificarem de que lado estou. Podem me tomar por português... (Mudando de assunto) Conseguiu fazer a entrega das peças?
Manuel Galego
Sim. Contei com o apoio de Zulu. Lembra dele?
Antônio Maria
Claro! O “cú d’ouro” [com forte sotaque português soando “kuduro”]... (Cumprimentando-o com um forte e caloroso aperto de mão) Fala negão!
Zulu
Oi Maria.
Manuel Galego
E o capitão? Fiquei de encontrar com ele aqui...
Antônio Maria
Não tenho boas notícias...
Manuel Galego
Morreu?!
Antônio Maria
Foi devorado pelos guaranis!
Manuel Galego
(Olhando para Zulu) Verdade?!
Antônio Maria
Vi a cabeça dele pendurada numa estaca da paliçada da aldeia guarani em Itaparica.
Zulu cospe enojado.
Manuel Galego
Coitado! (mudando o tom) Como você chegou até aqui?
Antônio Maria
Fiz o treinamento de arqueiros e lanceiros pataxós e tupis-cariris para uso do chicote em ações guerrilheiras aqui na Sede da Província. Atravessei a baia de todos os santos numa canoa que guiou os lanceiros, que vieram a nado, acredite...
Manuel Galego
Haja fôlego!
Antônio Maria
Desembarquei no porto da barra, entre os forte de Santa Maria e São Diogo na calada da noite. Já na mata, fomos surpreedidos por selvagens cooptados pelos portugueses e recebi uma flecha no olho. Mas eu, um pataxó e dois tupis-cariris sobrevivemos ao ataque dos tupinambá-caigangues e conseguimos fugir. Me lembrei do cabaré de Dona Maria das Cobras e vim caminhando e sangrando até aqui, onde ela me tratou com ervas. Sabia que você viria pra cá, pro porto, após a entrega das peças malês e angolanas. E então? Recebeu a paga?
Manuel Galego
Sim. Parte dei a Zulu. A do capitão, agora que ele morreu é minha. Mas tenho planos pra nós...
Antônio Maria
Planos? Quais?
Manuel Galego
Compar um saveiro...
Antônio Maria
Um saveiro? Pra quê?
Manuel Galego
Pra trabalhar na linha Salvador-Cachoeira e passar pelo lugar onde fizemos a oferenda à Mãe D’Água... Resgatar o tesouro do falso padre e a prataria do galeão...
Antônio Maria
Esquece isso, Galego!
Manuel Galego
Dispensar aquela fortuna? Deixar ela pros peixes? Vou contratar um contra-almirante mergulhador e ir em busca do tesouro... Você vem comigo?
Antônio Maria
Nem pensar. Não posso. Não concordo. Pela minha devoção à Nossa Senhora da Boa Esperança, pela promessa que fiz a São Sebastião se Ele me deixasse sobreviver à flecha certeira que me vazou o olho esquerdo... Com essas coisas não se brinca, Galego!
Manuel Galego
Não estou brincando. Falo sério. Convidei Zulu para ser meu sócio no negócio...
Antônio Maria
Você aceitou Zulu?
Zulu
(Para Galego depois de um breve silêncio) Me desculpe, Galego. Eu também respeito muito essas coisas. Acredito na Mãe D’Água. Mas vou torcer pra você conseguir ficar rico...
Antônio Maria
Não vá Galego! Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, esquece isso. Em nome do nosso amor...
Manuel Galego
Meu amor pela fortuna é maior do que eu, do que nós... Mas não vou lhe desamparar... Vou lhe dar parte do dinheiro que era do capitão.
Antônio Maria
Espero que você não se arrependa!
Manuel Galego
Prefiro arriscar ganhar ou perder na roda da fortuna...
Antônio Maria
Fico triste por ter que lhe perder para a vida mais uma vez...
Manuel Galego
Prometo uma despedida inesquecível... Vamos?! Estou com saudade de entrar em você... Onde fica sua camarinha aqui no cabaré?
Antônio Maria
Por aqui. Venham. Venha também Zulu...
Retiram-se para a camarinha de Antônio Maria. Escuro.
(5) QUINTA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS
No cais, Galego e seu contra-almirante mergulhador Moreninho ocupam-se com os preparativos da primeira viagem do saveiro. Zulu ajuda no embarque de parte da carga de mercadorias. Antônio Maria assiste a tudo da beira do cais.
Manuel Galego
Estenda a vela Moreninho! Amarre ali, forte.
Voltando ao cais para junto de Antônio Maria.
Manuel Galego
Tá chegando a hora...
Antônio Maria fica em silêncio. Zulu retorna do saveiro. Galego o recompensa com alguns trocados.
Manuel Galego
(Abraça Zulu) Valeu Negão! (Para Maria após abraçá-lo demoradamente) Não fica assim... Sempre que voltar pra Salvador vou lhe ver lá na Maria das Cobras...
Antônio Maria permanece cabisbaixo e em silêncio. Galego abraça-o e beija-lhe ternamente a cabeça.
Manuel Galego
(Mudando o tom) Chega de despedida! (Para Moreninho) Tudo pronto aí moleque?
Moreninho
(Aproximando-se apressado) Tudo. Vamos?!
Manuel Galego
Sim. Vá indo. Me espere lá. Já vou.
Moreninho afasta-se.
Manuel Galego
O moleque é ajeitadinho... Apertado o coisinha... Êita, que eu gosto da sacanagem... Leva jeito pra enrabadiço o menino. Novinho, dezeseis aninhos, as carnes dura... Uhu! Fui, Maria. Adeus Zulu!
Galego dirige-se ao veleiro e deixa a cena. Maria levanta a cabeça para ver a partida de Manuel Galego. Zulu aproxima-se por trás abraçando-o e colando o corpo em Maria.
Zulu
Fica assim não...
Antônio Maria
Vou sentir falta do rolinho saliente do Galego... Tem fumo? O meu acabou...
Zulu
Um rôlo. Pode pegar, ta no meu calção...
Antônio Maria
(Enfia a mão por dentro do calção de Zulu e muda rapidamente de humor) É muito fumo! Dá pra tontear qualquer um...
Zulu
Quer ficar tonto, vamo?! Vou lhe fazer esquecer o Galego...
Antônio Maria
Ah nego abusado! Gosta da “osadia”, né?!
Zulu
(Sedutor e sensual) Adoro!
Antônio Maria
Eu também.
Os dois se retiram apressada e alegremente de cena. Um arco-íris se delineia no ciclorama. Música alegre e carnavalesca que termina por fundir-se à uma cantiga para Oxumaré.[1] Escuro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário