quarta-feira, 29 de junho de 2011

ESCRAVOS DE JÓ


ESCRAVOS DE JÓ – A movimentação lúdica de praxias no aperfeiçoamento psicomotor da criança pré-escolar Y

Por Ricardo Ottoni Vaz Japiassu[1]

Aqui serão expostos aspectos psicomotores de crianças entre 4 e 6 anos, reunidas em grupo experimental multietário, revelados por ocorrências durante observação participante na implementação de proposta ludopedagógica para atividade cênica denominada Escravos de Jó, apresentada na segunda sessão de trabalho com o grupo.

Claudia – Quem conhece uma música assim: (Cantarolando) Escravos de Jó jogavam cachangá... Quem conhece?
Alguns – Eu!
Claudia – Então vamos cantar uma vez para quem não conhece?

Claudia Fuga
Educadora Infantil e Psicopedagoga





        A turma entoa a cantiga e, em seguida, a professora expõe verbalmente de modo breve o funcionamento do jogo Escravos de Jó.

Escravos de Jó
Pré-condição: Plateia de jogadores
Foco: Agir como um escravo paralelamente às regras tradicionais do jogo
Descrição: Divide-se o grupo em equipes. Define-se a ordem de apresentação das equipes na área de jogo. Os jogadores sentam-se em círculo voltado todos para o interior da roda. Cada jogador faz uso de um sapato. O(a) coordenador(a) apresenta a canção e explica que, nas partes “fortes” da cantiga todos devem colocar o sapato na frente do jogador sentado à sua direita. Todos deverão sempre ter um sapato à sua frente. As partes “fortes” da canção são assinaladas em negrito a seguir:
Escravos de
Jogavam cachan
Tira, põe, deixa ficar
Guerreiros com guerreiros
Fazem zig-zig-
Observação: Após a apresentação de todas as equipes na área de jogo, o (a) coordenador(a) pode propor regras complicadoras da performance dos jogadores entre outras, por exemplo: 1) Passar os sapatos substituindo a letra da música por “lá, lá,lá; 2) Passar os sapatos para o lado esquerdo, com a mão esquerda entre outras.
Instruções durante a atividade na área de jogo: Como age um escravo? Como canta um escravo? Como um escravo passa um sapato? Tentem ficar atentos às partes fortes da canção! Tentem não esquecer de passar os sapatos! Tentem passar os sapatos sem deixar de cantar a música!
Observar: Os jogadores têm dificuldade em coordenar os movimentos da mão enquanto cantam? Quando a música termina todos possuem um sapato à sua frente?
Avaliação colaborativa:
Sempre conduzir a avaliação após a performance de uma equipe na área de jogo. Formular perguntas inicialmente para os que se encontram na área de observação. Dirigir perguntas para os que estiveram na área de jogo: 1) É difícil jogar este jogo? Por que? 2) O que cada jogador precisa fazer neste jogo? 3) A equipe manteve-se na área de jogo? 4)  Por que alguns jogadores se atrapalharam ao passarem os sapatos adiante? 5)  Os jogadores agiram como escravos?

        Claudia solicita às crianças que se dirijam ate a área de jogo onde já se encontram posicionados os calçados. As crianças começam a calçar os sapatos.

Claudia – Não. Não é pra colocar os sapatos... É uma brincadeira (...) Senta. Agora, todo mundo senta nos colchonetes formando uma roda. Todo mundo tá com seu sapato?
Alguns – Tá
Claudia – (Para Ramon que desenvolve ações lúdicas com o tênis em torno à roda) Ramon, senta na roda. (Sugere-lhe um lugar) Senta ali. (Ramon senta em um lugar diferente do sugerido pela professora) Então, a brincadeira é assim: vocês vão passar o tênis para o colega que está ao seu lado direito. Tá bom? Então vai funcionar assim (Apontando-os) Você passa pra ele, ele pra ela (...) e ela pra mim. Tá bom? E eu pra ele. Então? Tá todo mundo segurando o sapato?
Alguns – Tá.
Claudia – Então presta atenção (Para Raphael) Cadê o seu sapato?

        Raphael (4 anos/1º estágio) colocara “seu” sapato na frente de Gilvan (5 anos/2º estágio) que estava sentado à sua direita. Claudia está à esquerda de Raphael. Ele recolhe o sapato e o posiciona à sua frente.

Claudia – Vai todo mundo igual a mim! (cantarola sílaba por sílaba ao tempo em que coloca o sapato na frente do Raphael) Es...cra... (Para Juliane que está à sua esquerda) Você pra mim! (Juliane passa-lhe o sapato que tem nas mãos) Isso (Para Raphael) Pega o meu agora, passa pra ele! (...) Entendeu como que vai fazendo? Então, vamos lá?

        Claudia retoma a cantiga. A criançada começa a jogar os sapatos uns nos outros prazerosamente. Claudia interrompe a cantiga.

Claudia – Não é pra jogar. É pra passar para o colega que está ao lado.


        Interrompe o pré-exercício ou ensaio da atividade e propõe o reinício do treinamento.

Claudia – Vamos lá, de novo! (Inicia a canção)

        Desta vez Raphael (4 anos/1º estágio) observa atentamente o desenvolvimento das ações dos colegas e esquece de passar adiante os sapatos colocados à sua frente. Muitos sapatos se acumulam diante dele.

Bruna (5 anos/2º estágio) – [Para Wellington (6 anos/ 3º estágio)] Passa! Passa!
Claudia – (Para Raphael) Você também não está passando!

        Mais uma vez o prosseguimento do “ensaio” é interrompido e os sapatos voltam a ser posicionados na frente de cada uma das crianças.

Luiz Ramon (6 anos/3º estágio) – (Mostrando o tênis à Claudia) Eu to com o seu!
Claudia – Tanto faz... Qualquer sapato.
Bianca (6 anos/2º estágio) – (Tomando o sapato que Gilvan tem nas mãos) Ah, eu vou querer o meu!
Claudia – O importante é que seja um sapato. Vamos lá, de novo...

        Recomeça o pré-exercício. Desta vez, Wellington não passa o tênis que lhe pertence e vai passando os que os outros que são colocados à sua frente. Risos, gritaria e euforia. As crianças parecem se divertir muito subvertendo as regras proposta e com o passa-passa dos sapatos. Pouco a pouco demonstram se ocuparem em recolherem e passarem adiante os sapatos colocados à sua frente. Quase todos revelam dificuldade em executar os movimentos e entoar a canção. A música chega ao fim.

Claudia – (Sorridente) Ó, até que a gente tá melhorando um pouco... (Todos riem) Tem que ser todo mundo ao mesmo tempo. Todo mundo tá com o sapato?
Luis Ramon (6 anos/3º estágio) – (tentando descobrir com quem ficara o seu tênis) Cadê o meu?

        Ramon olha em volta e constata que o seu tênis foi parar nas mãos do Wellington (6 anos/3º estágio). Vai até ele e tenta tirar-lhe o tênis das mãos.

Luis Ramon (6 anos/3º estagio) – Me dá o meu?!
Claudia – (Para Ramon) Não. Não precisa ser o seu Ramon. Qualquer sapato serve... De novo. Vamos ver se a gente consegue?

        Após estas ocorrências o desempenho das crianças melhora bastante no jogo embora algumas regras permaneçam sendo transformadas ou subvertidas pelos jogadores: uns atiram sapatos nos colegas posicionados à sua frente na roda; outros passam os sapatos adiante fora do ritmo. Mas algumas crianças esforçam-se para agir do modo proposto pelo jogo – e com desempenho satisfatório inclusive. A canção consegue ser cantada sem interrupção nestas circunstâncias.

Claudia – Parou! Vamos ver como estão os sapatos? Iche Maria! (Para Gilvan) Cadê o sapato?

        Gilvan (6 anos/3º estágio) colocara seu sapato fora da área de jogo após o término da canção e retomara seu lugar na roda sem nenhum sapato.

Bruna (5 anos/2º estágio) – (Apontando o lugar onde Gilvan colocou o sapato na área de observação) Ali!

        Raphael dirige-se instantaneamente até o local onde Gilvan deixara o sapato. Gilvan aponta o lugar onde está o sapato. Raphael agora procura em meio aos sapatos o que faz par com o seu.

Claudia – Raphael, vem! É só um sapato... Vem aqui, senta aqui.

        Rapahel ao retornar à roda pisa distraidamente sobre a mão de Ramon.

Luis Ramon (6 anos/3º estágio) – Ele pisou no meu dedinho!

        As crianças gargalham, inclusive Raphael e o próprio Ramon.

Claudia – Só que tem uma coisa: tem que cantar junto comigo e ir passando os sapatos!
Alguns – Eu tô cantando!

        O pré-exercício é retomado. Raphael volta a distrair-se e deixa mais uma vez acumularem-se sapatos à sua frente.

Claudia – (Para Raphael) Vai passando!

        A cada repetição o desempenho das crianças vai sendo aprimorado adequando-se às instruções que regulamentam a proposta para atividade lúdica. Observa-se domínio crescente por parte das crianças das praxias e coordenação de ações necessárias ao jogo. Os pré-escolares demonstram progressiva apropriação das regras do Escravos de Jó.

Claudia – Parou! (Observa a distribuição dos sapatos no círculo) Olha, eu acho que nós vamos acertar desta vez... Quem tá com dois? Dá um pro Raphael que ele tá sem nenhum...

        Jéssica (6 anos/3º estágio) entrega a Raphael um dos dois sapatos que terminaram posicionados à sua frente.

Raphael (4 anos/1º estágio) – Não! Esse aí não é o meu!
Claudia – (Para Raphael) Não. É só para brincar, tá bom? (Para o grupo) Então gente, olha, tem criança que está esquecendo de passar o sapato... fica olhando e esquece de passar... Não esquece. Tem que pegar  e passar... Vamos lá? Última vez. Todo mundo cantando junto!

        O ensaio recomeça. Raphael consegue permanecer atento e agir de acordo com as regras do jogo. Em seguida, dá-se a divisão do grupo em equipes e suas apresentações na área de jogo.
        É importante ressaltar que esta proposta para atividade lúdica embora aparentemente “fácil” solicita grande esforço físico e mental da criança pré-escolar. O Escravos de Jó requer atenção voluntária e coordenação motora “grossa” e “fina” do sujeito. As crianças acompanhadas demonstraram estar empenhadas em dominarem os mecanismos para o funcionamento do jogo auxiliadas e encorajadas pela professora.

Claudia – Gostaram desta brincadeira?
Alguns – Gostamos!
Alguém – Demais!
Claudia – Então, põe os sapatos ali no canto...

        Embora extensa, a transcrição das interações entre professora e as crianças e das crianças entre si é útil para demonstrar a exposição “ativa” (pré-exercício) das regras de funcionamento de algumas propostas lúdicas fornecendo uma visão mais nítida dos desafios didáticos que a ludopedagogia apresenta aos educadores infantis.
        Trabalhar pedagogicamente o lúdico na escolarização infantil solicita boa vontade, serenidade e paciência do(a) educador(a). Os métodos lúdicos exigem a colaboração de um ambiente de aprendizado que seja, simultaneamente, permissivo e estimulante.
        Não me parece difícil que seja reconhecido o valor educativo deste jogo na perspectiva do desenvolvimento cultural da criança particularmente da sua psicomotricidade através do aperfeiçoamento de suas praxias, isto é, dos automatismos que se constituem a partir da coordenação de diferentes ações físicas.
        A razão de não serem destacados aspectos cênicos do desempenho dos sujeitos na área de jogo (atuação como detetive) é a de que o objetivo da interpretação das interações trascritas restringe-se a demonstrar como, paralelamente aos conceitos teatrais, a ludopedagogia do sistema de jogos repercute no aperfeiçoamento psicomotor da criança.
        Evidentemente as transcrições podem ser úteis para serem problematizados vários aspectos das intervenções pedagógicas na escolarização infantil como a negociação relacional dos significados das ações e verbalizações de todos os enredados pelo empreendimento lúdico, por exemplo, mas isso solicitaria inúmeras digressões que nos fariam perder de vista o que nos propomos aqui.
        Talvez, por se constituir em instigante desafio psicomotor à criança o Escravos de Jó exerceu grande fascínio sobre as crianças acompanhadas, como aliás demonstra o depoimento de uma das mães, capturado durante a primeira reunião da equipe do projeto com seus pais e responsáveis:

        Mãe de Luis Ramon – Uma coisa que chamou muito a atenção foi o Escravos de Jó com sapatos. Pois é... em casa, todo mundo descalço porque ele queria brincar. E não queria usar a caixa de fósforos. Eu disse assim: “Mamãe quando era pequena também brincava, mas era com caixas de fósforos. Era assim, na mesa, quer ver?”  e ele “Ah, assim não tem graça. Eu quero igual ao que minha professora e o professor Ricardo ensinou!” Resultado, todo mundo na sala descalço brincando de Escravos de Jó (...) Uma coisa que eu notei é que ele tem cobrado demais [a ida à EMEI nos dias do projeto] A terça-feira, pra ele, é marcante. Não pode atrasar um minuto. No farol, aqui da João Dias, tem dia que eu fico desesperada com ele no carro. Eu saio mais cedo de casa...

        Veja-se o que diz a professora Claudia a respeito do primeiro encontro com os pais e sobre a introdução do Escravos de Jó na sua sala de aula regular:

Claudia – Eu achei que foi ótimo [a reunião com os pais e responsáveis pelas crianças do projeto], que os pais, assim, estão tendo um pouco da visão que a gente tá tendo... Verificando que as crianças estão brincando mais, se comunicando melhor... Achei bárbaro a mãe que colocou quanto à disciplina [autocontrole] da Bianca... Acho que fizemos a reunião no momento certo porque eles [os pais e responsáveis] estavam com uma certa expectativa deste retorno... Tanto que quando eles assistiram o vídeo eles estavam concluindo coisas que eles já estavam supondo... Eu sinto que a gente realmente tem que estar esclarecendo [o trabalho no projeto] para os outros professores, falando sobre os jogos teatrais, para que eles tenham um pouco mais de... para que o olhar deles seja um pouco diferente. É importante que os professores realmente tenham contato [com o sistema de jogos]. A criança é desorganizada... E ela vai se organizando de acordo com o tempo e a necessidade... Por exemplo, no lanche, as crianças sobem – a gente sobe em fila para elas não irem correndo nessas escadas – e a gente tinha um problema na fila porque todos queriam ser o primeiro da fila... Coisa de criança, né? E ai sugeriram fazer a fila por ordem de tamanho. Então agora é por ordem de tamanho. Só que a fila do começo do ano não é a mesma de agora, porque as crianças crescem – cada uma no seu ritmo, em ritmos diferentes... Tem criança que espichou... Eles mesmos percebem isso na hora da fila... Aí eles falam assim pra mim: “Professora, quem é mais maior?”  - eles falam assim – “Eu ou ela?” Aí eu falo; “Tal criança.” Então, quando eles vão pegar o lanche, já se organizam por si mesmos em fila, quer dizer, você não precisa mais falar para a criança [pedir para formarem a fila] (...) 

Sala de informática da EMEI
Quando a gente vai para a sala de informática eu ponho todos sentados no chão, explico quel o programa que a gente vai trabalhar no computador naquele dia, dou algumas dicas e cada um já sabe que vai para uma máquina. Então, eles mesmos já falam: “Chama um de cada vez!” -  porque se todos forem juntos vai dar confusão. Eles mesmos já pedem, já colocam as regras, eles mesmos se organizam. Eu falo sempre assim para eles: “Em casa, a mãe tem quantos filhos?” Eles respondem “Três!” “ Quatro!” – e até nove. Aí eu falo: “Gente, vocês são 38! A gente precisa ver a melhor forma da gente tá todo mundo junto. É muita criança pra mim cuidar! Vocês têm que me ajudar a cuidar dos outros.” Quando eles querem disputar alguma coisa, não é na palavra, eles batem, chutam... Isso é comum em criança. Então, pra estar organizando isso, eles mesmos já começam uma parlenda de escolha do tipo Mamãe Mandou... Por exemplo, quando eles entram na sala, cada um escolhe o seu lugar. Eu permito que fiquem até cinco em cada mesa. A mesa é redonda! No máximo cinco crianças. Então, quando tem seis, ora eles falam que o último que chegou tem que sair – quando não é a criança que eles querem que fique na mesa – ou senão eles fazem Minha Mãe Mandou e aí escolhem quem eles querem que saia: “Este daqui!” – apontando sempre pra quem querem ver fora da mesa, violando a sequencia natural da parlenda... [Risos] Eles resolvem. Então eles estão se organizando... Agora, se eu chegasse e falasse: “Olha, você vai ficar nesta mesa, você nessa, você naquela...” Quer dizer, eles já não iam nunca saber se organizar sozinhos. Outro dia eu fiz o Escravos de Jó com a sala inteira... Eu tinha uns 34 alunos e foi bárbaro. Porque as primeiras vezes, aquela confusão. E, assim, eles muito preocupados em quem não tava passando os sapatos, quem tava com muitos... E isso fez com que eles se regulassem mais a cada vez que o jogo era repetido... descobrissem a maneira correta de estarem passando os sapatos... Eu fiz o jogo umas cinco vezes e constatei que eles vão ficando cada vez mais atentos em cada rodada. E como eles percebem quem é lento, quem não é. Para eles é importante [a professora jogar com o grupo de crianças] porque eu sou um modelo... E se eles não dominam [as regras do jogo] eles precisam de um modelo... Tanto que no Escravos de Jó, quando eu fiz com a sala toda, eu joguei junto com eles. Então muitas crianças iam pelo meu ritmo... A hora que eu passava o sapato, eles também passavam... Depois que eles dominam [as regras do jogo] eu posso me retirar... Dá pra perceber como cada criança tem ritmo próprio... Então deu pra notar um monte de coisas. E, assim, o respeito que eles têm... Eles falam uns para os outros: “Olha, você tem que passar mais rápido!” E isso numa boa, sem brigar com o coleguinha, sem ser uma coisa muito conflitante... Foi muito legal! E as crianças do Teatro [do projeto] Jéssica, Camila, Luis Ramon que faziam parte da turma diziam: “Ah, nós já brincamos!” e “Deixa que eu explico como que é!” Então eu falei: “Vai, explica como que é.” E eles colocaram para o grupo todos os procedimentos durante a atividade: “Cada um vai passando!” e “Tem que ser todo mundo ao mesmo tempo!” Eles iam verbalizando as regras do jogo. E, assim, ocorreram as mesmas coisas que a gente verificou no grupo experimental. Primeiro eles ficavam muito preocupados em ficac cada um com o “seu” tênis e aí as crianças do grupo multisseriado diziam: “Não. Pode ir passando...” ou “Não tem problema!” Quando parava a música, alguns queriam pegar seus sapatos de volta e eles [as crianças do projeto] diziam: “Não tem problema, vamos continuar!” Cada vez está ficando mais claro para mim como são importantes as brincadeiras e jogos com regras para um maior controle por parte da criança de sua própria conduta, para o dia a dia delas... Para eles estarem se respeitando, interagindo uns com os outros, cooperando... Porque a gente trabalha em grupo. Tudo é em grupo numa sala de 30 alunos, numa sala de aula... Ora são grupos pequenos (duplas, reunião de cinco por mesa) ora são maiores (com número de participantes decidido por eles mesmos). Eu constato isso do respeito à vez do outro, muito, na informática... Eu falo: “Agora vamos mudar!” e “È a vez de outro no computador!” Então eles trocam de lugar, dão dicas e ajudam o coleguinha numa boa... Quer dizer: tudo isso são regras que eles estão aprendendo e colocando em jogo no dia a dia deles... Acredito que também em casa [fora do ambiente escolar].

        O depoimento de Claudia permite uma visão nítida das possibilidades de uso intrumental da ludopedagogia como procedimento para colaboração de dados a respeito das crianças e de sua contribuição para o desenvolvimento de maior autocontrole e organização da conduta do sujeito. O trabalho educativo tomando por base a ludopedagogia (com ênfase nas regras dos jogos) revela-se uma ferramenta poderosa no sentido de levar o sujeito a apropriar-se da cultura lúdica e escolar e de conduta socialmente desejável em seus processos sigulares de crescimento pessoal.
        O modo “ativo” de apresentação das regras do jogo - o ensaio colaborado com o(a) coordenador(a) dos jogos – apresenta-se como solução adequada às necessidades da criança pré-escolar. Uma exposição unicamente verbal resultaria inóqua.
        O modelo de ação a ser “copiada” pelos sujeitos é o dos procedimentos operacionais da proposta para atividade lúdica e não o de como deve ser a performance do detetive neste jogo. Espero que isso tenha ficado claro e que não deva haver dúvida por parte do leitor de que: (1) O(a) coordenador(s) de jogos não fornece aos jogadores um modelo de atuação cênica quanto à performance dos papeis a serem performados ; (2) O(a) coordenador pode e necessita fornecer um modelo de ação (pré-exercício) para explicitar o funcionamento operacional de algumas proposta à crianças em momentos iniciais de aprendizado e manejo da linguagem verbal.
        Já se disse antes daquela “costura” que fixa o pensamento da criança ao campo perceptivo instantâneo e palpável, às ações físicas. A dificuldade experimentada por algumas crianças quanto à compreensão de que o “seu” sapato, no jogo, não refere o objeto de “sua” propriedade ilustra exemplarmente o elo entre pensamento e ações nos momentos iniciais do desenvolvimento cultural.
        Creio ter fornecido ao leitor a possibilidade de compartilhar a visão das prerrogativas para o trabalho pedagógico com a linguagem teatral na educação infantil que se defende aqui.
        Julgo suficiente a argumentação desenvolvida no sentido de demonstrar a interconexão entre as dimensões intrumental e estética do método ludopedagógico para o desenvolvimento da capacidade cênica na escolarização da criança pré-escolar.
        Uma intervenção pedagógica neste sentido é possível embora laboriosa.
        Resta abordar aspectos da passagem do faz de conta ao jogo teatral e dos avanços das crianças acompanhadas no que diz respeito à apropriação e manejo consciente da linguagem cênica ou corporal – o que seguirá sendo feito na apresentação dos resultados obtidos com a pesquisa.




Y Fragmento do capítulo quarto da tese de doutoramento do autor JAPIASSU, Ricardo (2003) Jogos teatrais na pré-escola: o desenvolvimento da capacidade estética na educação infantil. Faculdade de Educação da USP, 234 pp.
[1] Aposentado professor titular da UNEB, Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Atividade, Desenvolvimento Cultural, Educação Continuada e à Distância-GEPADEad

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