domingo, 6 de novembro de 2011

Crítica à politica cultural do Estado

Por um diagnóstico crítico e problematização do Edital de Apoio ao Teatro da FUNCEB e SECULT através do Fundo de Cultura do Estado da Bahia.

Ricardo Ottoni


EDITAL nº 006/2009
MANOEL LOPES PONTES – APOIO À MONTAGEM DE ESPETÁCULOS DE TEATRO NO ESTADO DA BAHIA


(1) Objeto

projetos de montagem de espetáculos inéditos de teatro” (Negrito meu) [Item1.1, p.1]

A questão do ineditismo do espetáculo precisa ser melhor discutida e pensada por exigir esclarecimentos que possam caracterizá-lo [o ineditismo].

O ineditismo refere apenas o TEXTO DRAMÁTICO (texto escrito que será a base sobre a qual se produzirá a espetacularização) ou abrange o TEXTO CÊNICO (encenações singulares, originais e únicas de um texto dramático)?

Embora o ineditismo não seja explicitado como exigência de inabilitação dos projetos no item 5 do Edital que trata da SELEÇÃO, subentende-se que este é eliminatório quando examinado o item 4.5 sobre a INSCRIÇÃO E ENTREGA das propostas e também o Caput do Edital.

“...estarão abertas as inscrições para a seleção e a concessão de apoio a projetos de montagem de espetáculos inéditos de teatro, nos termos do presente edital e seus anexos...” [Caput, p. 1] [Negrito meu]

“4.5 Em nenhuma hipótese serão aceitas inscrições ou entrega de qualquer documento ou material fora do prazo, forma e demais condições estabelecidas neste edital e em seus anexos.”  [Item 4.5, p.3][Negrito meu]

Isso [o que refere o ineditismo] precisa ficar CLARO para os que vão julgar o mérito das propostas e também para os proponentes. Sem uma delimitação conceitual do que o Edital busca perseguir com o “ineditismo” criam-se brechas que podem se tornar demasiado estreitas - ou largas.

O Edital parece estar contaminado por uma “febre” de “novidade” que deixa de fora qualquer releitura cênica de um texto dramático que busque ousar colaborar novos sentidos e significações para obras literárias com forma dramática já consolidada ou invariante.

Isso, do meu ponto de vista, é um desserviço ao Teatro. Quem ousaria afirmar, por exemplo, que o Hamlet de Shakespeare-Moura não é “inédito”?! Quem iria propor apoio cultural a uma (re)leitura cênica de Vestido de noiva de Nelson Rodrigues ou de O rei da vela de Oswald de Andrade então?

Nos deparamos com uma questão complexa que só agrava os estertores da atividade teatral, desencorajando-a. Mas eu não tenho a intenção de desenvolver uma tese aqui sobre o assunto. Meu intento é alertar para a necessidade de uma discussão exaustiva dos critérios teóricos, metodológicos e políticos da relevante iniciativa do Governo e Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

Neste sentido, examine-se o “manual” para elaboração de projetos culturais da SECULT concretizado com a publicação da 4ª Edição do Workshop [sic] para elaboração de Projetos Culturais intitulado ORIENTAÇÕES PARA ELABORAÇÃO DE PROJETOS CULTURAIS particularmente da página 6 a 11 onde estão elencadas as “oportunidades” para as Artes Cênicas e Literatura.

Não existe NADA ali que busque encorajar a LITERATURA DRAMÁTICA. Verifiquem que a premiação de obras literárias “inéditas” deixa de fora esta importante categoria da atividade criadora [p. 8 e 9]. É como se o Teatro (texto cênico) houvesse renunciado definitivamente ao texto dramático?! Isso é inaceitável. Uma barbárie que despedaça as colunas do templo de Dionisio... Terrorismo cultural.

A exclusão da categoria dramática e o silêncio dos editais sobre ela solicita nosso engajamento em defesa desta modalidade de criação artística ameaçada de extinção por um tipo de selvageria [tirania] estética cênica predatória - tão violenta quanto a matança de cetáceos e a extinção de espécimes vegetais raras.

É preciso serem aperfeiçoadas e revistas as políticas de apoio cultural, particularmente de apoio ao Teatro. A ênfase na semiose visual [não-verbal] e discursiva [improvisacional] da linguagem teatral subestima o valor do texto dramático. O Teatro não é só AÇÃO mas também PALAVRA, VERBO.

Como chegaram até nós os registros das falas das personagens de Ésquilo, Sófocles, Aristófanes ou Shakespeare? Sem os textos dramáticos, do VERBO, o pensamento das gerações passadas poderia ter chegado até hoje? E o pensamento da contemporaneidade como será fixado daqui para frente? Pelo vídeo? Por audiorregistro digital?

É um equívoco crer-se que o audiorregistro digital ou o texto dramático sejam suficientes para dar conta da complexidade do fenômeno teatral. A teatralidade das encenações, sejam elas baseadas em textos dramáticos ou não, são eventos transitórios impossíveis de serem repetidos. Sua evanescência, sua natureza fugaz, seu poder de contágio emocional, seus sentidos imprevisíveis precisam ser negociados dia a dia, a cada apresentação, e portanto o ineditismo lhe é intrínseco.

Não é possível a rigor “repetir” uma mesma representação teatral. Elas serão sempre únicas, embora possam estar assentadas sobre um mesmo roteiro ou (pré)texto ou na livre improvisação. Nem mesmo a transmissão em direto de um espetáculo extracotidiano como um jogo de futebol poderá corresponder à “força” dos acontecimentos [carga afetivoconativa] do modo como ocorrem, no local em que estes eventos acontecem. Pensemos nisso.

Qualquer criador ou artista que se deparar com o Edital será por ele “paralizado”. O Edital foi feito para PRODUTORES, pessoas de negócio que se apropriam da criação artística - e não para seus genuínos criadores. Não se pode criar sem liberdade, sem lidar com o imprevisível ou com o que escapa à planificação (planejamento). Inaceitável não existir alternativa ao mercantilismo cultural.

Sem prejuízo do apoio à produção cultural (aos empreendedores cuja matéria prima é a Arte [as Artes]) é preciso que o Estado pense em novos modos que possam constituir genuíno APOIO À CRIAÇÃO EM ARTES e supere o viés metodológico do Edital em referência aqui.

Como esclarece Caíque Botkay “a quase totalidade das verbas que poderiam estar sendo oferecidas à classe artística através de editais... estão reproduzindo e reforçando o caráter predatório que vai, cada vez mais, se vulgarizando nos veículos de comunicação. Ressaltem-se as exceções de praxe: grupos independentes ou ações individuais em todas as áreas artísticas... que permanecem produzindo arte e conhecimento de forma atávica, apesar das carências de apoios institucionais.” [1]

Existe toda uma outra série de questões que eu poderia levantar mas falta-me ânimo por falta da escuta de seus ecos. Como se sabe “uma andorinha só não faz  verão” - porque é presa fácil para as aves de rapina sempre de plantão...

Silenciar perante a “Inquisição” nem sempre traduz ignorância. Ave Galileu!


[1] BOTKAY, Caíque (2008) A quem serve a Cultura? Revista de Teatro/A nova dramaturgia – autores contemporâneos e a construção da cena, n. 519, jul-ago. Rio de Janeiro: SBAT, p. 42-43.

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