domingo, 18 de setembro de 2011

ESCOMBROS DO MUNDO LIVRE ( IX )

Décima primeira movimentação de personagens
BANHEIRO MASCULINO

Pão-de-ló adentra o sanitário. Vai até a cabine na qual escondeu a arma. Sobe no vaso, vasculha a caixa plástica da descarga suspensa. Entra em desespero, arranca-a, sacode-a repetidamente e termina por jogá-la no chão. Põe as mãos na cabeça. Anda de um lado a outro desorientado.

Pão-de-ló
(Chuta a caixa da descarga, com violência, como se fosse uma bola) Porra!

Pão-de-ló deixa o sanitário enfurecido.



Décima segunda movimentação de personagens
MURO DOS FUNDOS
       
Andressa maquiando-se e Sonia em pé ao seu lado. Sonia toma o espelho das mãos de Andressa, mirando-se nele. Andressa agora maquila Sonia. O batom de Sônia é usado como sombra e blush.



Andressa
Pronto: está ótima! Só tá faltando mesmo um pouco de pó. Pó é o arremate final de qualquer maquiagem - pra segurar o carão, entende?!
Sonia
Izinha [Zabellão] tá demorando muito, cê não acha?
Andressa
Aquela sapa que não se atreva a sumir com a minha grana. Eu vou até o “quinto dos inferno” atrás dela!
Sonia
Relaxe, criatura!
Andressa
Esse lance de farinha, prefiro eu mesmo “gerar”. (Pondo em dúvida a honestidade de Zabelão) Pó é tentação, mona!
Sonia
(Avistando Zabelão) Ó ela aí…0

        Entra Zabelão.

Andressa
Rolou?
Zabelão
Com certeza…
Andressa
Deixa eu ver.
Zabelão
(Tirando um papel da calça) Calma. viado, tá achando que eu ia lhe dar “bolo”? (Entregando-lhe a droga) Meu lance né farinha não, “véi”. Eu sou ERVAngélica (Roçando o corpo no corpo de Sônia) Meu vício é só esse aqui além de maconha e “cachaça”, é claro.

Andressa
(Conferindo a quantidade de droga) Ah, bom, pensei que cê ia negar que é chegada nas “etába” e nos “otim-fum-fum”?! (Para Sonia) Bicha, tá bem servidíssima a parada! Limpa logo o espelho pra gente “bater” umas quatro carreira e ficar assim tipo rapidamente “bem” - e voltar correndinho pra ver os “moleque” da dança.

Sonia limpa o espelho de bolso com a camisa. Andressa despeja um pouco da droga, “entocando” o restante no bolsão. Saca sua navalha e, com a lâmina, quebra as pedrinhas de cocaína transformando-as em pó. Zabelão e Sonia beijam-se na boca ardentemente.

Zabelão
(Para Sônia, após beijá-la, segurando-a pelo queixo) Só fiz esse avião por causa de você, princesa…
Andressa
(Referindo-se à droga pronta para ser consumida) Preparadíssima! (Para Sonia) Segura aqui, Soninha, pr’eu fazer um canudo pra gente cheirar?! (Passando-lhe o espelho com quatro carreiras)

Sonia obedece-lhe prontamente.

Andressa
(Para Zabelão, enquanto improvisa um canudo com uma nota de cinco reais) Vai, Zabelão, faz barreira aí pro vento não espalhar a “purpurina”! Bicha, “vamo” ficar purpurinada!

Andressa aspira rapidamente uma carreira. Olha para cima, tapando a narina usada com um dos dedos. Bate o canudo sobre o

espelho para aproveitar os resíduos da droga que ficaram no interior do rolinho feito com a nota de cinco. Passa o canudo pra Sonia e coleta, com a ponta do dedo, as sobras da droga, passando-as nos dentes. Em seguida, deslumbrada, dirige-se para o fundo da cena ao som da introdução de “Âmbar” [música de Adriana Calcanhoto interpretada por Betânia no álbum Âmbar]; sobe, de costas para a platéia, em um degrau [queijo] próximo ao muro da escola. Tira a mochila; retira de dentro uma peruca e uma escova de cabelo; coloca rapidamente a peruca; calça velozmente uma bijuteria dourada na mão esquerda [ou usa tatuagem de henna replicando a jóia usada por Betânia na foto de capa deste album] [1] e veste por fim uma túnica branca que estava posicionada atrás do degrau próximo ao muro [réplica de um dos figurinos de Betânia no encarte deste mesmo álbum]. Dubla a intérprete baiana, inicialmente, ainda de costas para a platéia, mas com a cabeça em perfil; com a mão direita segura a escova que lhe serve como pivô de microfone. Luz vai caindo em resistência; só um tênue foco sobre Andressa no degrau.

Tá tudo aceso em mim
Tá tudo assim tão claro
Tá tudo brilhando em mim
Tudo ligado
Como se eu fosse um morro iluminado
[Luzes pisca-pisca acendem-se sobre o forro semi-transparente da
túnica branca usada por Andressa]
Por um âmbar elétrico
Que vazasse nos prédios
E banhasse a Lagoa até São Conrado
E ganhasse as canoas
Aqui do outro lado

Tudo plugado
Tudo me ardendo
Tá tudo assim queimando em mim
Como salva de fogos
Desde que sim eu vim
Morar nos seus olhos

Zabelão e Sônia, com o espelho nas mãos, trocam carinhos ao som dos últimos acordes da gravação. As luzes da túnica se apagam; Sonia aspira a penúltima carreira; Andressa desfaz-se da caracterização de Betânia.


Andressa
(Para Zabelão, vestindo a mochila) Canal maravilhoso o seu! Quem é o barão?
Zabelão
Gostou?
Andressa
Muuuuito!

Sonia passa o canudo para Andressa.

Andressa
(Recebendo o canudo) Seu “marido” num  vai mesmo querer cheirar?
Sonia
(Passando-lhe o espelho) Izinha não curte pó não. A dela é só canabis - e álcool!
Andressa
(Cheirando outra carreira) Pensei que cê dava uns teco de vez em quando, Zabelão?

Zabelão
(Acariciando os cabelos de Sônia) Não. Eu já disse que sou ERVAngélica! É muita adrenalina pra meu coraçãozinho de leão… (Para Sonia) Né, “mô”?

Sonia responde-lhe com um beijo de língua na boca.

Andressa
(Estendendo-lhe o canudo) Vai querer mais uma, Soninha?
Sonia
(Interrompendo o beijo) Lógico! (Pegando o canudo das mãos de Andressa) Cê sabe qu’eu não dispenso um “flash”, querida!

Sonia cheira a última carreira. Bate o canudo no espelho e passa o dedo sobre os restos, levando-os à boca para os esfregar sobre os dentes. Limpa o espelho com a blusa. Retoca o batom.


Zabelão
(Advertindo-os) Pó é cilada, “véi”…
Andressa
Mas pra quem precisa controlar o apetite é “uma”; álcool e fumo “dá” fome!
Sonia
Quando eu cheiro, esqueço a fome, passa logo a vontade de comer. Aliás, por isso que eu curto pó.
Andressa
(Irônica) Só por isso, bonita?
Sonia
(Afetada e teatralmente eufórica) Por isso também, amiga!

Andressa
(Tomando Sonia pelo braço) ‘Bora, mona, vamo “zuar” porque cheirar e ficar parado é o Ó!
Sonia
(Para Zabelão, retirando-se de braço dado com Andressa ) Na saída a gente se vê!

Zabelão senta-se e coça a cabeça, máscula, com a palma da mão. Andressa e Sônia saem sorridentes. Zabelão prepara um cigarro de maconha.


Décima terceira movimentação de personagens
BANHEIRO MASCULINO

Japinha, Pão-de-ló e Chouriça vasculham o sanitário à procura da arma.

Chouriça
(Para Pão-de-ló) Vacilão!
Japinha
(Também dirigindo-se a Pão-de-ló) Porra, Lozinho, cê dá uma baforada e fica logo de bobeira, “véi”?! Se liga “mané”!
Pão-de-ló
Maior Prejú… Tô fodido! (Quebrando a pia, irado) Porra!
Chouriça
Aqui, num tá!
Japinha
Cataram o meu ferro…


Pão-de-ló
Será que foi parar na diretoria?
Chouriça
Se tivesse lá a gente já tava sabendo. Tá ligado?
Pão-de-ló
Isso não é pegadinha, não?! É?
Japinha
Pegadinha?!
Pão-de-ló
Cês esconderam a “máquina” só pra curtir comigo.
Chouriça
Entrou alguém - quando cê tava cagando?
Pão-de-ló
Não.
Japinha
Cê viu quem entrou - na hora que cê saiu?
Pão-de-ló
Tisc, tisc…
Chouriça
Cê num tá de “crocodilage” com nós, não? Tá Lozinho?!
Japinha
Se tá pensando que num vai ter que pagar por ela… 
Pão-de-ló
Qual é?! Fechei o negócio. Vou pagar. Dei minha palavra, porra.
Japinha
Certeza ter deixado o “ferro” aqui?
Chouriça
Onde cê foi, depois de cagar?
Pão-de-ló
Na quadra, entregar a escalação do time pro Titia.

Japinha
Vamo lá de novo! De repente ela caiu nos mato em volta?
Chouriça
Possa crer!
Pão-de-ló
(De saída com Japinha) Cê num vem?
Chouriça
Vou dar um mijão e tô indo!

Japinha e Pão-de-ló deixam o sanitário. Japinha segue repreendendo a falta de atenção de Pão-de-ló. Ouve-se o som do jato de mijo demorado de Chouriça no vaso sanitário. Ouve-se em BG a música do ensaio do grupo de dança paralelamente à entrada silenciosa de Guga no banheiro. Guga engatilha e segura a arma com as duas mãos, mirando-a na direção de Chouriça. Chouriça sacode o pênis, guarda-o na calça, sem perceber a presença de Guga. Vira-se e então o vê.

Chouriça
(Fechando o zíper) Qual é CD?! (Apalpando o próprio pênis) Gostou e tá querendo mais?
Guga
Cala a boca, seu… maníaco sexual!
Chouriça
(Movendo-se na direção de Guga, tentando acalmá-lo) Tá “nervosa”?
Guga
Parado aí! (Chouriça pára e levanta ambas as mãos até a altura dos ombros)
Chouriça
(Desafiando-o) Vai ter coragem de me pipocar, viadinho?

Guga
Não sou gay, já disse! Você me obrigou a fazer aquilo. Você que é viado - e não admite. Quem gosta de fazer sexo com homem é você. Assuma… Se tem algum homossexual, neste banheiro fétido, é você. Você!

Chouriça parte irado para cima dele. Música em BG ganha volume. Guga descarrega a arma em Chouriça, defendendo-se antecipadamente do seu ataque. Chouriça se ampara nas paredes da cabine.

Chouriça
(Desesperado, chorando, conferindo os ferimentos à bala) Cê me furou, “fila-da-puta”! Me furou…

Guga permanece de arma em punho, paralizado, disparando automaticamente o gatilho mesmo após o término da munição. Chouriça cai ao lado do vaso sanitário. Tenta inutilmente, apoiando-se no vaso, levantar. Tomba finalmente com a cabeça pendente dentro da bacia higiênica. Guga abaixa os braços lentamente até ficar com eles paralelos ao corpo.

Guga
(Vingado) Eu não sou gay! Te disse que não era viado… (Começa a chorar, arrependido do crime que cometeu) Eu não sou bicha! Tá ouvindo?! (Aos prantos) Responde?! (Repetindo reiteradamente) Eu não sou boiola! Não sou viado! (Cai ao chão, de joelhos; segura a cabeça de Chouriça como se fosse beija-lo na boca) Não sou…



Guga larga a arma, deixando-a no chão. Abraça-se a si mesmo em choro convulsivo. Põe as mãos na nuca, apertando a cabeça com os cotovelos. Chora. Para de chorar aos poucos. Enxuga as lágrimas com a camisa. Pega novamente a arma através do tecido da camisa, limpando nela suas digitais. Assoa o nariz, recompondo-se. Deixa a arma no chão. Levanta-se decidido e, já à porta do banheiro, olha desconfiado para ambos os lados. Retira-se furtivamente. A música Jump tem início com a performance de Andressa no papel de Madonna. A luz desce em resistência ficando apenas um foco verde sobre o cadáver de Chouriça paralelamente à iluminação do show de street dance dos rapazes e Andressa. Os bailarinos executam a performance acrobática, impecavelmente, com iluminação apropriada, até o término de toda a música acompanhando a dublagem de Andressa/Madonna. Escuro. Apenas o foco sobre o corpo de Chouriça e a luz vermelha de uma giroflex de carro de polícia incidindo insistentemente sobre o palco. Concentração e rumor de curiosos à porta do banheiro [Todo o elenco]. Ouve-se, em off, um diálogo entre a rádio-patrulha e a central de polícia, que se refere ao registro de homicídio no interior de uma escola pública da periferia urbana de São Paulo [ou do local da encenação]. Escuro total.

        Versão atualizada do texto PELOS LENÇOIS DO MUNDO LIVRE de minha autoria registrado na SBAT em 2006.
                                           Vera Cruz, 24 de fevereiro de 2009.




[1] Opcionalmente Andressa pode usar uma tatuagem de henna na mão desde o início do espetáculo que reproduza a imagem da jóia usada por Bethânia agilizando a caracterização neste momento da peça.

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