segunda-feira, 12 de setembro de 2011

AQUARELA




Ricardo Ottoni
Um grande poeta brasileiro da contemporaneidade – de estatura semelhante aos gigantes da Academia da Língua portuguesa como Guimarães Rosa, João Ubaldo Ribeiro, Jorge Amado ou Fernando Pessoa - uma vez questionou, retóricamente, através de um retumbante silogismo musicado, quem haveria de negar a superioridade da Prosa sobre a Poesia, já que esta última estaria para o Amor assim como aquela para a Amizade: “E sei que a Poesia está para Prosa assim como o Amor está para a Amizade. E quem há de negar que esta [a Prosa] lhe é superior?!”

Sempre quis desafiar publicamente este postulado e ousar negar a “superioridade” seja da Prosa em relação à Poesia ou da Poesia em relação à Prosa. Não consigo colocar a questão desde uma perspectiva “desenvolvimentista”, como parece estar posta no silogismo ao qual me refiro. Mas, contraditoriamente, é o próprio Poeta quem, mais adiante, ao longo do seu poderoso texto, esclarecerá a unidade indefectível entre Poesia-Prosa: “Poesia concreta: Prosa caótica. Ótica futura.” Ocorre que a indissociação entre Poesia e Prosa não se torna visível quando o silogismo é destacado do contexto no qual é enunciado.

Como quis dizer o Poeta neste trecho, no meu entendimento, a partir de uma perspectiva rizomática, não é possível haver lugares “superiores” ou “inferiores” na abordagem de conceitos distintos como Poesia e Prosa, embora estes estejam abrigados sob a proteção de uma consigna maior: a Literatura; nem será possível também qualificar o Amor ou a Amizade, sentimentos que mobilizam ambos intensa emoção - e que são por ela [emoção] reunidos e categorizados numa hierarquia conceitual maior, a dos afetos, apesar de suas “diferenças”.


O que distingue o Sentimento da Emoção? Sua natureza biológica ou cultural, segundo Wallon[1] e Vigotski.[2]
A natureza das emoções é biológica e indisfarçável através de alterações visíveis do corpo do organismo afetado por elas – descargas de adrenalina na corrente sanguínea provocando tremores nas mãos, rubor facial, ritmo diferenciado da respiração e fala etc.
Já a natureza dos sentimentos é reconhecidamente cultural e portanto muitas vezes disfarçável, porque podem subjugar a emoção, dobrá-la, sufocá-la. Mas isso nem sempre é regra.
O sentimento pode incrementar a intensidade do afeto alimentando a emoção até sua expressão máxima e imprevisível, de modo consciente ou não.
Tanto a Prosa como a Poesia são veículos para a comunicação de sentimentos. A Prosa de modo mais organizado e disciplinado, mais apolíneo e “comportado”  à moda do Modernismo; a Poesia de maneira imprevisível, dionisíaca, “desorganizada” e irreverente ao sabor da Pós-Modernidade.
Mas as fronteiras entre Poesia e Prosa, se é que podem existir, muitas vezes estão “borradas” como em uma aquarela irisada. Onde começa a Prosa e termina a Poesia? Onde a Amizade pode dar lugar ao Amor e vice versa? O que é teatral ou dramático nelas? Não se trata de julgar qual é “superior” a qual, mas de afirmar as diferenças de suas zonas de especificidades que escapam a região hachurada onde se encontram seus contornos.
Então é isso.
Para mim, e para o Poeta, creio, Poesia e Prosa, Amor e Amizade, se confundem e se fundem muitas vezes dando lugar a uma unidade indivisível como o quanta“ótica futura” nas sábias palavras do poeta.
Não interessa à perspectiva  não hieraquizada pós-modernista saber qual é “superior” a qual – porque isso cheira aquele “etnocentrismo” repugnante e inaceitável por parte do “desenvolvimentismo” modernista excludente e discriminador.
Talvez seja mais conveniente calar na boca respostas em forma de novos desafios a silogismos de(s)contextualizados e repetidos de modo papagaiado por multidões. Seja por força da autoridade ou de reverência respeitosa à sabedoria anciã. Ou pelo desejo de “invaginação” do conhecimento. [3]

O Passado e o Futuro se fundem e confundem no Presente ou na contemporaneidade, assim como a Poesia e a Prosa, o Amor e a Amizade, o Dramático e o Teatral. Lembremos que o silêncio pode ser expressão de gozo intenso; não apenas a gritaria e o estardalhaço eufóricos.
Hoje consigo além de enxergar, VER. E sinto uma espécie de alegria (joy) tranquila, sem euforia, ao vislumbrar a aquarela irisada que se delineia após as tempestades provocadas pelas palavras! Consegue vê-la?  Sim, ali mesmo onde o arco irisado é traçado pela chuva verbal do Poeta... Oxumaré Loquerê Oxumaré!



Vera Cruz, 18 de janeiro de 2009. 03:27 da manhã de um domingo insone à beira mar.




[1] WALLON, Henri (1971) O lugar das emoções entre os comportamentos afetivos In: As origens do caráter na criança – os prelúdios do sentimento de personalidade. São Paulo: Difusão Européia do Livro, cap. VII, p.149-153, p.151.
[2] BLANK, Guillermo (2003) VIGOTSKI, Liev Semionovich. A educação do comportamento emocional. In: Psicologia pedagógica Edição comentada. Porto Alegre: Artmed, p.113-124, Cap. 6, p. 123, nota nº 1.
[3] Conceito postulado por Michel Mafessoli em pronunciamento público no salão da Reitoria da UFBa em setembro de 2008 para caracterizar o paradigma da pós-modernidade em contraposição ao modelo “falocêntrico” do Modernismo.

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