sexta-feira, 22 de julho de 2011

UAMIRI (10)



DÉCIMA TERCEIRA MOVIMENTAÇÃO CÊNICA

        Uamiri e Moema estão juntas numa clareira da mata com colares de folhas de ipadu que são destacadas e mascadas por elas.

Moema
Tem certeza que foi mesmo aqui...
Uamiri
Né aqui que a gente vem sempre pegar as folha de ipadu?
Moema
Será que a gente vai vê eles de novo?
Uamiri
Vai. É só a gente esperar...
Moema
(Fazendo um carinho nos cabelos de Uamiri) Tú quer ele é?
Uamiri
Só quero vê de novo...
Moema
Pra quê?!


Uamiri
Tu num sabe qu’ele é meu irmão Moema? Que ele é filho do anhanguera que é meu pai?
Moema
Tenho ciúme dele...
Uamiri
Tu tá duvidano do meu bemquerer d’ocê?
Moema
Não minha Jaci... Tô não... Pois se num tem mermo jeito dos encantado que nem nóis juntar nossa carne com a deles...
Uamiri
Nossa carne é feita de éter... Mas jeito tem...
Moema
Qual?
Uamiri
A gente tomar o corpo deles... emprestado - só um pouquinho...
Moema
É por isso que tu quer ver ele de novo?
Uamiri
Tu podia tomá o corpo dele... e eu o do amigo... Pr’eu sentir o gosto da língua de carne dele dentro da minha boca...
Moema
Tu num gosta do gosto da minha língua de éter não, é?

As duas se beijam apaixonadamente até que percebem ruídos de gente se aproximando e se escondem na mata. Entram Diego e Pedro.


Pedro
Nosso cantinho secreto...
Diego
O esconderijo das folhas de ipadu
Pedro
É uma tentação essa tal de ipadu... Bom demais mascar essas amarguinhas...
Diego
Folhinha “marvada” essa... A gente fica doidão...
Pedro
Fico ainda mais doidão [“por você” em subtexto impronunciado]...
Diego
(Mascando uma folha e passando outra para Pedro) Se o povo fica sabendo a verdade da nossas saídas pra “caçar passarinho”...
Pedro
Ainda mais agora que você tá de casamento marcado com aquela gaza donzela...
Diego
Lourdes Maria...
Pedro
A tocadeira de rabeca!
Diego
Né rabeca não, Pepe: é violino...
Pedro
Diz ela que a madeira mais boa pra fazer o arco de tocar o “violim” é a de pau brasil...
Diego
Por isso que o galego pai dela propôs aliança com meu pai... pra venderem o nosso pau lá na Europa... Pr’os fabricantes dos arcos das violas e dos violinos...

Pedro
Ela é muito menina ainda, Dygo: tem as teta assustada!
Diego
(Rindo) E existe teta assustada? Rola assustada eu sei que tem...
Pedro
(Tentando ser sério) Pois se a gaza quase não tem peito?! (Rindo) Mas você não dispensa nada, né? (Sensual) Safado...
Diego
(Sedutor) Não dispenso você...
Pedro
(Colando sua testa na testa de Diego) É?! (Provocante) Vai me dispensar depois de casar com ela?
Diego
Vou não...

        A cena permanece imóvel. Uamiri e Moema se aproximam e rondam os dois curiosas.

Moema
É ele mermo ‘Tajaci?
Uamiri
É! É ele.
Moema
Tá diferente... (Despindo Diego) Cresceu, virou home... Por que a gente não cresceu?
Uamiri
(Despindo Pedro) Somo encantado... Esqueceu?
Moema
Eles tão cheio de pelo... Os ovinho dele crescero... Tão quase do tamanho de ovo de galinha... Espia...

Uamiri
Vou aparecer pra ele num sonho e pedir pra ele arriar uns ovo cozido pra cabocla Moema... Pra ele num perdê os ovo dele... (Moema exprime interrogação) Ô?! Se ocê quer capar o moleque derne a primeira vez que viu os ovo dele?
Moema
Vou entrar nele... Pra sentir como é ter ovo pendurado do lado de fora do corpo!
Uamiri
E eu vou entrar no amigo... Pra sentir o gosto da língua de carne dele na boca!

Mudança de luz e efeitos de magia. Música aborígene.[1] Os amantes se abraçam e se beijam apaixonadamente. Os casais se revezam em uma dança prazerosa e lúdica onde a atriz que faz Uamiri toma o corpo de Pedro e beija o ator que faz Diego; a atriz que faz Moema toma o corpo de Diego e beija Pedro; as atrizes se beijam quando atuam os papéis de Diego e Pedro; os atores retomam os papéis de Diego e Pedro e se beijam. Moema e Uamiri observam os dois ternamente, abraçam-se e desaparecem trocando carinhos em meio à mata. Escurecimento lento.

DÉCIMA QUARTA MOVIMENTAÇÃO CÊNICA

        Sinhazinha Lourdes Maria em pé toca violino acompanhada pela flauta de Maira. Pe. Antônio sentado em um tronco de árvore.[2] Interrompem a performance demonstrando cansaço.

Pe Antônio
Por que parou Senhorinha Lourdes Maria? Estava indo tão bem...
Lourdes Maria
Deu-me fome, Padre (P/ Maira) Dá-me uma pêra Maira...

        Maira recolhe uma bela pêra de uma cesta de lanches e a entrega a Sinhazinha Lourdes após a polir com um pano branco. Sinhazinha Lourdes acomoda o instrumento cuidadosamente em seu estojo. Empunha a pêra e tira-lhe um naco. Maira bebe água de uma cabaça.

Pe Antônio
(Examinando o arco) A sonoridade do instrumento produzida por estes arcos de pau Brasil realmente é diferente...
Lourdes Maria
São bem mais resistentes e mais fáceis de talhar segundo os artesãos e luthiers especializados na confecção de violinos e violas...
Pe. Antônio
Ao menos uma coisa é certa: a aliança de seu pai com Dom Diogo lhe assegurará bons arcos para seus violinos...
Lourdes Maria
A música me faz esquecer esse casamento arranjado... e lembrar-me saudosamente das salas de Madrid e Calais e dos amigos músicos dos saraus em Lisboa... Esse Diego é muito rude e sem instrução...
Pe. Antônio
É um rapaz guapo... e muito asseado. Temos que admitir isso. Mas foi criado aqui, no meio da selva... Ele parece demonstrar subida estima e respeito por vossa senhoria...
Loudes Maria
Ele só tem olhos para aquele Pedro – seu “amiguinho” inseparável...

Pe. Antônio
Se já demonstra ciúmes dele, isso revela que o moço não lhe é indiferente...
Lourdes Maria
Parecem Cosme e Damião, os dois-um...

        Maira ri.

Pe Antônio
Não me parece um rapaz promiscuo nem mulherengo...
Lourdes Maria
(Para Maira entregando-lhe o que restou da pêra) Onde disseram que iriam?
Maira
Caçar codornas para servir à sinhazinha...
Pe. Antônio
Vê?! Já se revela um gentil provedor dos seus apetites, senhorinha...
Lourdes Maria
O senhor deve saber mais do que ninguém que a alma humana não se alimenta apenas de codornas, padre...
Pe. Antônio
Sim. Mas sem um corpo bem alimentado como é possível sustentar o violino e extrair dele a música? (Pausa) Porque tocam Liszt quando Tchaikoviski tem peças que valorizam mais o violino e a flauta?
Lourdes Maria
Gosto da melodia desta rapsódia húngara... Me faz lembrar do sonoridade poderosa das grandes orquestras...
Pe. Antônio
Fui informado que um artesão radicado na floresta confecciona um tipo de viola feita a partir da urucurana – um tipo de cedro – e usa cola preparada a partir de bexiga de peixe...
Lourdes Maria
Tocada com arco?
Pe Antônio
Não. À moda braguesa...
Lourdes Maria
Uma viola de mão?!
Pe. Antônio
Sim. “Uma viuela española” com cordas feitas de folhas de tucum!
Lourdes Maria
Que interessante... Gostaria de conhecer-lhe a sonoridade.
Pe. Antônio
Sabia que isso iria atrair sua atenção... Se me autorizar, posso sugerir a seu futuro sogro convidar o músico-artesão para nos mostrar a sonoridade da viola nativa... que chamam de cocho-viola ou viola-de-cocho.
Lourdes Maria
Sim. Faço gosto no convite de Dom Diogo ao violeiro luthier da floresta. Como ele se chama?
Pe. Antônio
Domingos Manuel... Estará aqui de passagem para Manaus vindo de Cuiabá. Foi o que me disse Joaquim Moreira, o fabricante e reparador de cordofones de Felgueiras, antes de embarcarmos para o Brasil. O artesão irá a Portugal a seu convite para mostrar-lhe os instrumentos que confeciona na floresta de modo intuitivo e improvisado...
Lourdes Maria
Se Sr. Domingos puder aceitar o convite de Dom Diogo, ficarei muito contente de conhecer a viola brasileira... (Para Maira) Ouviu Maira?! Talvez possamos tocar com o violeiro: você, na flauta; eu, no violino?!

        Lourdes Maria e Maira exultam de alegria. Escurecimento lento.




[1] NASCIMENTO, Milton (s/d) BAÜ MÈTÓRO [Música original do Povo Kayapó] in Txai [CD áudio] UNI/CNS/Columbia, Faixa 3.
[2] LISZT, Franz (1992) Ungarishe Rhapsodie Nr. 1 in FRANZ LISZT: Movie Play/Brasil. CD Áudio/London Festival Orchestra, Faixa 1 [fragmentos de trechos para violinos]

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