sexta-feira, 8 de julho de 2011

Fundamentos prospectivos da avaliação escolar

AVALIAÇÃO DO APROVEITAMENTO DE ESTUDOS: Fundamentos prospectivos para entender o desempenho escolar


Por Ricardo Ottoni Vaz Japiassu


O desempenho escolar “medido” com base em supostos indicadores objetivos de “qualidade” possui dobras que recobrem perversos interesses mercantilistas e concepções autoritário-heterônomas de gestão, adminstração e controle das subjetividades. Isso não é novidade. O que interessa afirmar aqui é que cabe exclusivamente ao docente aceitar ser conivente com este tipo de concepção amesquinhada da natureza dinâmica, processual e singular do aprendizado tipicamente humano.

Problematizar a avaliação escolar, sem deter o curso das ações educacionais, é aceitar o desafio de alterar o percurso de um trem que se move sem freios, em alta velocidade, mantendo o compromisso de preservar os trilhos em que corre a composição, a integridade dos vagões e a vida da tripulação e dos passageiros embarcados: uma tarefa para super-heróis de revistas em quadrinhos ou do cinema de animação com auxílio da computação gráfica.

Em regime de urgência, a abertura de uma trilha neste denso “matagal” que é a avaliação da performance de pessoas na execução de tarefas escolares pode ter início com a remoção da folhagem que recalca o que se esconde sob a crença generalizada na validade dos indicadores hegemônicos para “medir” a performance ou atuação de sujeitos imersos em processos de escolarização.




O desempenho de humanos na execução de ocupações colaborativas do mundo sociocultural geralmente está conectada com o êxito ou não de suas ações para o alcance de objetivos previamente determinados em prazos pré-estabelecidos.

Na escolarização, os objetivos a serem alcançados costumam, em geral, serem descritos em termos de “aprendizagem”. Repete-se isso no dia a dia, revelando-se a adesão irrefletida à cadeias de significações (semblantes) que terminam por banalizar e conformar o nosso pensamento à uma determinada “modelagem” da mente social.

Torna-se necessário, para iniciar um processo de reeducação de nossas opiniões sobre o assunto, distinguir a “aprendizagem” do “aprendizado”: a aprendizagem é o saber intelectual ou “teórico” geralmente transmitido pela linguagem verbal - não necessariamente vinculado à uma prática efetiva ou experiência pessoal do escolar; já o aprendizado é o conjunto dos saberes e conhecimentos adquiridos a partir da prática ou experiência pessoal continuada dos educandos, através de variadas modalidades de cognição, nos processos de colaboração orientados pela atividade relacional, emergente com a efetiva participação da pessoa em ocupações histórico-socioculturais tipicamente humanas - que não se restrigem exclusivamente aos modos intelectualizados, metacognitivos ou “teóricos” de enfrentamento de desafios postos pelo mundo natural ou cultural.

Tanto na perspectiva educacional de avaliação da aprendizagem como na do aprendizado é ingenuidade acreditar que o conhecimento seja algo “individualizado”. Os mecanismos do conhecer sim, são pessoais e intransferíveis, mas o conhecimento é o conjunto dos saberes historicamente colaborados, vivenciados e transmitidos (teórica e praticamente), de geração a geração: um empreendimento culturalizado que requer a participação de muitas pessoas.

Indivíduo é a palavra usada, indistintamente, para referir um único organismo de qualquer população de seres vivos (plantas, animais etc). Ao contrário, sujeito tem sido um termo cada vez mais empregado para destacar a natureza histórico-cultural, consciente e interativa do psiquismo tipicamente humano (refere exclusivamente o “indívíduo” na população de seres humanos).

A “modelagem” ou “adesão” do pensamento das pessoas ao paradigma dominante transnacionalizado para validação dos indicadores do desempenho satisfatório de sujeitos nas práticas colaborativas compulsórias do aprendizadoensinado, no âmbito da escolarização, alimenta-se por crenças amparadas em artefatos culturais (testes de QI, verificações de memorização de informações e formulários padronizados, por exemplo), aplicados a grande número de pessoas, das quais se espera uma determinada “resposta” dentro de uma “normalidade” arbitrariamente definida por critérios de letramento alfanumérico.

Artefatos culturais da psicologia “objetiva” - oriundos do acompanhamento laboratorial (associacionista e behaviorista) do comportamento de animais - têm sustentado e justificado os modos hegemônicos de organização seriada do aprendizadoensinado, práticas de recompensa e punição da conduta de aprendizes, processos seletivos e de promoção para o direito à progressão no regime seriado, arquitetura e design instrucional universalizado do mobiliário e das rotinas escolares.

As técnicas eficazes desenvolvidas por laboratórios de psicologia, para o treinamento ou condicionamento de ratazanas, pombos e cães na execução de tarefas específicas, passaram a ser aplicadas para a obtenção do desempenho “satisfatório” de humanos em ações sociais várias particularmente no âmbito da preparação para ocupações laborais objetivando maior “produtividade” e “controle” de sua conduta.

Deduziu-se, a partir dos resultados obtidos nesses laboratórios, que indivíduos podem se “comportar” (sem consciência) a partir de condicionamento clássico ou “automatização” dos seus modos de agir, baseado em sucessivos estímulos condicionantes objetivando respostas condicionadas; que seu “comportamento” poderia ser regulado ou “dirigido” por continuada exposição a intervenções modeladoras de sua conduta baseadas em uma sistemática de recompensa e punição de ações.

Ocorre que, diferentemente dos demais animais, os seres humanos são sujeitos que não apenas se “comportam” - ou “reagem” passiva e satisfatoriamente ao condicionamento clássico - mas “interagem” (pessoas podem agir, conscientemente ou não, de modo adequado ou inadequado, alterando sua performance de modo imprevisível em razão de circunstancias várias). Admitir-se isto, no entanto, não equivale negar que os seres humanos possam ser treinados para o desempenho automatizado de determinadas tarefas operacionais (como no treinamento “marcial” e desportivo de “alta performance”, direção de veículos automotores ou manipulação objetal satisfatória de sofisticadas máquinas, por exemplo).

Não é difícil admitir que seja um equívoco absoluto pretender “medir” o aprendizado humano recorrendo-se a instrumentos de “verificação” da aprendizagem universalizados que não levam em conta os processos conscientes do sujeito. Tampouco julgar como “definitivos” ou “estigmatizadores” os indicadores de aproveitamento escolar em momentos do processo de aprendizado continuado, dinâmico e provisório de colaboração de conhecimentos dos seres humanos.

A recente decisão da UFRJ de responsabilizar o MEC pela conivência e submissão aos semblantes internacionalizados da avaliação do desempenho escolar - que mascaram a restrição do direito universal de acesso à progressão no regime seriado dos sistemas de ensino - abre a possibilidade para discussão e o enfrentamento corajoso por parte da Universidade de políticas educacionais excludentes e perversas comprometidas com a mercantilização crescente de todas as esferas da vida social.

O intrincado rizoma histórico-cultural da avaliação dos modos de ser das pessoas e dos seus desempenhos pessoais, em tarefas específicas, tece uma rede viscosa que desempodera e finda por “paralizar” as tentativas de discussão dessassombrada de questões educacionais ainda insuficientemente equacionadas.

Aceitemos o desafio de colaborar propor e tolerar alternativas para organização da escolarização nacional que não se limitem à reificação do regime de progressão seriada ou sequencial tampouco à adoção de critérios transnacionalizados, excludentes e estigmatizadores, para normatizar os ritmos singulares e as diferentes oportunidades socioeconômicas de acesso à escolarização; que possamos desmascarar práticas que buscam impor um modo de compreender, “estático” e “paralizante”, contrárias à plasticidade ou capacidade permanente de aprendizado dos seres humanos.

Neste sentido, cabe defender o uso de outros indicadores do aproveitamento das vivências do sujeito ao longo de sua imersão na cultura escolar como, por exemplo, o portifólio pessoal (rigoroso acompanhamento processual dos sinceros interesses e desejos de aprofundamento de estudos e pesquisas em áreas específicas do conhecimento, através da análise de sua produção escolar).

Os exames “padronizados” para restringir o acesso à educação superior - que só constatam o acúmulo inútil de informações numéricoalfabéticas alienadas das práticas socioculturais relacionais em que estas podem receber alguma significação relevante – deveriam ser definitivamente banidos e recusados pelo MEC. Mas, sem esses indicadores não há liberação de verbas para a Educação... É esse o pensamento mesquinho dos economistas, a face oculta da mercantilização perversa de todos os aspectos da vida social: o mal-estar que aflige a humanidade na contemporaneidade.

Ao decretar o fim do vestibular para o acesso à educação superior, gratuita e de qualidade, a UFRJ, como Pilatos, “lava as mãos” e entrega ao MEC a crucificação dos sonhos dos que almejam o direito universal de acesso ao conhecimento, dos que desejam o crescimento como seres humanos.

Devemos celebrar a recusa da UFRJ em defender os vigentes e perversos mecanismos do MEC para legitimar a restrição do acesso à educação superior (a reboque indisfarçável de políticas educacionais comprometidas com a mercantilização internacionalizada do conhecimento) e aproveitar a ocasião para discutir a proposição de alternativas à calcificação de semblantes da avaliação escolar.

Talvez, o orgulho e a soberania dos países enredados pelos organismos internacionais dedicados à Educação possam elevar-se com a recusa dos critérios padronizadores vigentes - que violentam a diversidade e especificidade sociocultural dos projetos pedagógicos das nações - e encontrar alternativas menos intolerantes e mesquinhas para “qualificar” o desempenho escolar.

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