quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O SOBRINHO DE RAMEAU – Sátira segunda


O SOBRINHO DE RAMEAU – Sátira segunda  
                                                de Diderot (1713-1784) Sec. XVIII

Excertos selecionados por Ricardo Ottoni
"Uma cena para dois"

DIDEROT
Faça bom ou mau tempo, tenho o hábito de ir passear ... às cinco horas da tarde. Sempre solitário ... entretenho-me comigo mesmo divagando sobre política, amor, gosto ou filosofia. Abandono meu espírito à mais completa libertinagem. Deixo-o ... seguir a primeira ideia, sábia ou louca, que se apresenta, como, nas alamedas, ... nossos jovens dissolutos seguem uma cortesã ... deixando esta por outra, assediando todas e não se prendendo a nenhuma. Meus pensamentos são minhas rameiras ... Certa noite ... fui abordado por uma dessas esquisitas personagens ... misto de altivez e baixeza, de bom senso e desatino ... Estais curioso para saber o nome do homem e o sabeis. É o sobrinho de Rameau.

SOBRINHO DE RAMEAU
Ah! Ah! ... senhor filósofo! Que fazeis aqui, no meio de tantos desocupados? Perdeis também vosso tempo ...?

DIDEROT
Quando não tenho algo melhor para fazer, divirto-me ...

SOBRINHO DE RAMEAU
Neste caso, vos divertis raramente.

DIDEROT
Não penso muito em vós quando não vos vejo. Mas sempre me agrada rever-vos. Que tendes feito?

SOBRINHO DE RAMEAU
O que vós, eu e todos fazem: o bem, o mal e nada.
DIDEROT
A propósito, vedes vosso tio algumas vezes?

SOBRINHO DE RAMEAU
Quando passa pela rua.

DIDEROT
Não lhe ajuda em nada?

SOBRINHO DE RAMEAU
Só pensa em si próprio. O resto do mundo não lhe interessa.

...

DIDEROT
Aceitemos, pois, as coisas como são. Vejamos o que nos custam e o que nos rendem.

...

SOBRINHO DE RAMEAU
Sim, tendes razão ... A melhor ordem das coisas, em minha opinião, é aquela onde eu deveria estar, e dane-se o mais perfeito dos mundos, se eu não estiver nele ... Tudo que sei é que eu gostaria de ser um outro ... Sou invejoso. Quando fico sabendo de algum fato degradante de sua vida privada, escuto com prazer; isso nos aproxima e suporto mais facilmente minha mediocridade. Estive e estou, pois, irritado por ser medíocre. Sim, sim, sou medíocre e estou zangado.

DIDEROT
Se é só isso que vos magoa, não vale muito a pena.
SOBRINHO DE RAMEAU
Sabeis que sou um ignorante, um tolo, um louco, um impertinente, um preguiçoso ... um vadio ... Não me contesteis, por favor. Ninguém me conhece melhor do que eu, e ainda não disse tudo ... Sempre vos interessastes por mim porque sou um coitado que no íntimo desprezais, mas que vos diverte

DIDEROT
Não vos quero aborrecer e concordarei plenamente.

SOBRINHO DE RAMEAU
Eu vivia com um pessoal que me aceitava justamente porque eu era dotado ... de todas essas qualidades ... Perdi tudo! Perdi tudo por ter tido senso comum uma vez, uma única vez em minha vida ...

DIDEROT
Mas não há jeito de voltar? A falta que cometeste é tão imperdoável? ... Por mais sublime que sejais, um outro pode substituir-vos.

SOBRINHO DE RAMEAU
Dificilmente.

DIDEROT
Eu iria procurá-los. Não lhes daria tempo para se arranjarem sem mim.

SOBRINHO DE RAMEAU
(Pondo a mão direita sobre o peito) Sinto aqui algo que se ergue e me diz: ... Não o farás! Desperta sem mais nem menos, sim, sem mais nem menos, pois há dias em que não me custaria nada ser tão vil quanto se queira. Nestes dias, por um vintém, lamberia o cu da pequena Hus.

DIDEROT
Alto lá, amigo. Ela é alva, bonita, jovem ... rechonchuda, e o que dizeis é um ato de humildade a que um outro, mais delicado do que vós, poderia rebaixar-se algumas vezes.

SOBRINHO DE RAMEAU
Trata-se de lamber o cu no próprio e no figurado ... e, palavra de honra, neste caso, tanto no próprio como o figurado me desagradariam.

DIDEROT
Se o ... que vos sugiro não vos convém, tende, então a coragem de ser mendigo.

SOBRINHO DE RAMEAU
É duro ser mendigo enquanto há tolos opulentos a cujas expensas pode-se viver. E além disso é insuportável desprezar-se a si mesmo.

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