segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

FURTAR E FODER


Furtar e Foder
Poema de Gregório de Mattos e Guerra (1636-1695)




Gregório de Mattos e Guerra, o "Boca do Inferno"


“No Brasil, por volta da segunda metade do século XVII, irá se destacar a figura do baiano formado em Leis por Coimbra, Gregório de Matos e Guerra, ‘músico popular e tocador de viola boêmio do seiscentismo colonial’ [Cf. José Ramos Tinhorão] “ (p.37)
FILHO, Abel Santos Anjos. (2002). Uma melodia histórica – Eco, Cocho, Cocho-Viola, Viola-de-Cocho. Cuiabá: A.S. Anjos Filho

“De volta à Bahia em 1682 (...) já em 1684, [Gregório de Mattos] inicia andanças boêmias pelos engenhos do Recôncavo baiano, cujos proprietários o abrigavam naturalmente atraídos por suas qualidades de compositor de coplas e romances – que acompanhava na viola ‘que por suas curiosas mãos fizera de cabaço’ (...)” (p.55)
TINHORÃO, José Ramos. (1998). História social da música popular brasileira. Rio de Janeiro: Ed. 34.

“Em 1694 é deportado [Gregório de Mattos] por seus amigos para Angola, pois seus poemas contra o Governador Antonio Luiz Gonçalves da Camara Coutinho, o fanchono beato e amante do Capitão da Guarda, haviam indigitado o poeta com os filhos da autoridade, que queriam matá-lo. Em Angola, o poeta envolve-se em rebelião de militares, traindo-os, para poder retornar ao Brasil, sem permissão de vir para a Bahia, morrendo em Recife no ano de 1695”
PERES, Fernando da Rocha. (1996).Gregório de Mattos/Coleção Poesia Falada v1. Salvador: Luz da Cidade


“Gregório não deixou obra escrita. Entretanto, não se deve confundir sua produção com literatura oral nem popular no sentido em que vieram a assumir uma e outra, ou ambas, conjuntamente. Sua tradição mais recente é ibérica, e mais que lusíada, castelhana, sobretudo no que diz respeito à sátira.”
PARANHOS, Maria da Conceição. (1996). Gregório de Mattos/Coleção Poesia Falada v1. Salvador: Luz da Cidade.



Encenação de Bocas do Inferno - espetáculo sobre vida e obra de Gregório de Mattos e Guerra / Bahia 1979

Inesquecível performance de Armindo Bião como o irreverente Gregório de Mattos, dirigido por Deolindo Checcucci


Deolindo Checcucci



FURTAR E FODER

De dous [dois] ff [efes] se compõe
esta cidade ao meu ver
um furtar, outro foder

Se de dous [dois] ff [efes] composta
está a nossa Bahia,
errada, a ortografia
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta,
e quero um tostão perder
que isso a há de perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
esta cidade a meu ver.

prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco,
que são B-A-H-I-A:
logo ninguém me dirá
que dous [dois] ff [efes] chega ter,
pois nenhum contem sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff [efes] da cidade
um furtar, outro foder

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A INTERPRETAÇÃO DO PATRIMÔNIO COM COMUNIDADE: UM PROCESSO HISTORIOGRÁFICO COLABORADO


FARIAS, Eny KLeyde Vasconcelos Farias. (2010). Maria Felipa de Oliveira – Heroína da Independência da Bahia. Salvador: Quarteto, 148p.

Eny Kleyde Vasconcelos Farias


A Interpretação do Patrimônio com Comunidade: um processo historiográfico colaborado. y
                                                                             Ricardo Ottoni Vaz Japiassu *












“A Bahia se apressou em esquecer Maria Felipa, mulher, negra, pobre e pescadora. Não foi apresentada nos livros didáticos, nem nas comemorações do Dois de Julho, mas, apesar de quase dois séculos de construção do esquecimento, a voz heróica de Maria Felipa não se calou na memória insulana” (p.39)


Maria Felipa de Oliveira – Heroína da Independência do Brasil é o livro mais recente da professora-pesquisadora Eny KLeyde Vasconcelos Farias, Mestre em Educação pela UFBa. Trata-se do relato dos resultados obtidos com os estudos acerca de Maria Felipa – heroína da Independência da Bahia, ativista negra que teve papel decisivo nas batalhas pela consolidação do Império brasileiro travadas na ilha de Itaparica, ponto geograficamente estratégico para o abastecimento de víveres às tropas portuguesas sob o comando do General Madeira de Melo que se encontravam “sitiados” em Salvador pelos batalhões leais à Dom Pedro I.

A partir de rigorosa pesquisa documental, iniciada em 2002, a professora Eny consegue exitosamente colaborar dados que interconectam fontes da historiografia tradicional às contribuições críticas e interpretativas da memória afetiva sociocultural dos independentistas durante a Campanha da Bahia.

Prefaciado pelo Prof. Dr. Ubiratan Castro de Araújo e precedido por uma introdução da pesquisadora, o material encontra-se organizado em dois grandes capítulos ao fim dos quais são apensados importantes anexos, relação das fontes documentais, lista de informantes e depoentes sendo finalizado pela apresentação honesta das referências citadas ao longo do texto.

O livro é uma espécie de “mosaico” (patchwork) de evidências do protagonismo de Maria Felipa de Oliveira nas lutas pela Independência do Brasil, e vem somar-se ao clamores dos itaparicanos pela justa inclusão de Felipa no panteão dos heróis do Dois de Julho e recuperação da memória da participação dos povos afro-descendentes e ameríndio-descendentes na instituição do Estado brasileiro.

Nas sete páginas da Introdução a pesquisadora apresenta os limites e desafios colocados ao resgate de relatos que, excluídos da historiografia abstrata, resistem às políticas hegemônicas de “esquecimento” através de tradições orais e práticas simbólicas sinalizando a urgência de reparação dos danos à memória imaterial do patrimônio de coletivos que subrepticiamente é “esquecida” pelos processos de registro historiográfico hegemônicos porque “a história tradicional pesquisa ‘estadistas’, ‘generais’ e ‘eclesiáticos’ “ (p.32).

O Primeiro Capítulo possui vinte e oito páginas dedicadas à exposição dos procedimentos metodológicos da singular abordagem desenvolvida pela autora consignada Interpretação do Patrimônio Com Comunidade, uma modalidade do Método de Observação Participante ou Pesquisa Participante (MAY, 2004)[1] originalmente usado nos estudos etnográficas de natureza qualitativa da Antropologia e Sociologia (André e Lüdke, 1986).[2] Nele, a pesquisadora denuncia as lacunas a serem preenchidas por posteriores estudos numa perspectiva hermenêutica dialógica voltados para a recuperação e empoderamento da memória coletiva de grupos sociais tradicionalmente silenciados pelas elites intelectuais justificando sua opção teórico-metodológica pelo compromisso de “escrever sobre aqueles que historicamente representam as ‘maiorias sem nome’ ” (p.35).

O Capítulo Segundo é o mais extenso do livro e subdivide-se em sete subitens que tratam de expor as escassas evidências históricas sobre os feitos de Maria Felipa de Oliveira alocando-os pertinentemente na diacrônica sequencial dos relatos da historiografia oficial. Merecem destaque o incêndio e explosão da barca Constituição com 350 marinheiros e 15 canhoneiras, por mulheres e pescadores liderados por ela, armados com burlotes contendo chumbo e pólvora, em 14 de outubro de 1822 e, posteriormente, sua inteligente coordenação de ações bélicas pela incansável participação na batalha corpo a corpo da praia do Convento, que selou definitivamente os ataques portugueses à ilha de Itaparica em 07 de janeiro de 1823 (Data magna da ilha de Itaparica). Também os “causos” e histórias pitorescas que compõem o imaginário coletivo preservado em memória oral dos insulanos (itaparicanos) sobre a entidade Maria Felipa (surras de cansanção nos soldados, atitudes impertinentes, habilidades no manejo de armas brancas e excelência na prática da capoeira etc).

A  pesquisa da professora Eny, como ela mesma diz, é um clamor pela preservação do patrimônio histórico-cultural Maria Felipa de Oliveira  e “deve ter continuidade em suas manifestações, tomando o ano de 2010 como um novo ponto de partida para a preservação da memória na perspectiva da cidadania” (p. 51).

Os limites da investigação, colocados pela precariedade de fontes que reúnem registros da memória coletiva não hegemônica, absolutamente, não comprometem a belíssima narrativa autoral na colaboração dialogada de dados, via Interpretação do Patrimônio Com Comunidade efetuada - a não ser para o mau-humor intolerante dos adeptos de concepções do rigor acadêmico que menosprezam pesquisas que ousem ir além das fronteiras das tradicionais narrativas científicas ou ideologicamente comprometidas com o silenciamento das “maiorias sem nome”.

O modo “pós-moderno” de desenvolvimento da argumentação pode causar “estranhamento” aos familiarizados com a lógica das narrativas modernistas, aprisionadas à uma lógica sequencial “aristotélica”. Mas o efeito dos saltos (ir e vir) no “passeio” pelos documentos recolhidos pela autora confere dinâmica e vivacidade típicas do paradigma hipertextual ou rizomático predominante na contemporaneidade - que sustenta a operacionalidade das redes telemáticas (GOMEZ, 2004). [3]

O livro deve ser referência obrigatória nos estudos aprofundados sobre a História do Brasil e da Bahia e servir como andaime para edificar novos patamares no empoderamento de abordagens qualitativas às problemáticas socioculturais.
 
Referências
ANDRÉ. Marli & LÜDKE, Menga. (1986). Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU.
GOMEZ, Margarita V. (2004) Educação em rede – uma visão emancipadora. São Paulo: Cortez.
MAY, Tim (2004) Pesquisa social – questões, métodos e processos. Porto Alegre: Artmed.






y Resenha crítica publicada em OBSERVE http://www.observecult.blogspot.com

* Doutor em Educação e Psicologia, mestre em Artes Cênicas/Teatro pela USP, licenciado e bacharel em Teatro pela UFBa. E-mail: rjapias@yahoo.com.br

[1] MAY, Tim (2004) Pesquisa social – questões, métodos e processos. Porto Alegre: Artmed.
[2] ANDRÉ. Marli & LÜDKE, Menga. (1986). Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU.
[3] GOMEZ, Margarita V. (2004) Educação em rede – uma visão emancipadora. São Paulo: Cortez.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

EUDOXIA Língua em trapos 1

Eudoxia Língua em trapos é uma série de breves depoimentos informais do Prof. Dr. Ricardo Ottoni Vaz Japiassu



Confira o que já está disponível no YOUTUBE

Um conceito de Teatro
Eudoxia 1

Discussão do conceito de Teatro
Eudoxia 2

Probelmatizando os conceitos de Teatro
Eudoxia 3

Falando do Outro
Eudoxia_4 

Sob a opessão cotidiana dos semblantes 
Eudoxia_5 

Sobre a Terapia Social da Peformance ou Terapia Social 
(English)
Eudoxia_6

Afinal o que refere arte-educação?
Eudoxia_7

Teatro e colaboração de sentidos
Eudoxia_8



YEMANJÁ ( III )







Duzinha
Mas anda tudo de chapéu na cabeça. Deve de ser “medo”.

        Remendeiras.

Toninha
A vida da gente é esperar. Quando não é esperar é esquecer...
Ceição
Como foi?
Toninha
Como sempre foi... Saiu pro mar como saía todos dia; em cima da jangada; e eu fiquei na praia, como ficava todos dia: parada; toda dura veno ele se afastar... o olho preso no meu “home”; veno ele diminuir, diminuir até virar um pontinho preto nesse mundão azul... A gente não sabe nunca se aquele pontinho vai crescer de novo ou se vai sumir pra sempre... Quando a jangada dele deu na praia tava com mancha de sangue... Diz os pescador que foi cação!

        Remendeiras cantam.

                Entrou lua, saiu lua
Mas inté de madrugada
Esperei o meu bemzinho
Foi pro mar numa jangada


        A rede chegou. Os pescadores vêm com seus apetrechos de pesca e cestos com o resultado de uma pescaria farta. Pedrão trás, além do cesto, duas linhas de fundo; os pescadores vão alguns para suas casas, outros para o boteco. Pedrão vai para casa. A casa de Pedrão é típica de pescador: humilde, pobre mas muito limpa. Em cena só os objetos estritamente necessários ao suporte da ação dramática; Dulce, depois de lançar um olhar de imensa gratidão ao pequeno altar de Yemanjá, ajuda Pedrão a tirar o cesto que transporta na cabeça.

Dulce
Chegou cedo!
Pedrão
É. Peixe tava comendo bem. Arruaça melhorou?
Dulce
Já `ta bom. Ele tava era com luxo. Botei o ungüento de mastruz que Mãe Rosa mandou. Ele botou a doença toda pra fora na tosse.
Pedrão
E o xarope de agrião com ameixa, ´cê fez?
Dulce
Fiz home de Deus.
Pedrão
E a febre já foi?
Dulce
É de hoje! ... Tem naus de três dia.
Pedrão
Cadê ele?
Dulce
Disse que ia dar uma mãozinha na puxada de rede. Depois ia buscar o gelo.
Pedrão
Com aquele resto de tosse, carregando gelo na cabeça...
Dulce
Oxente Pedrão! Cê acha que se ele não ‘tivesse bom de todo, eu deixava ele ir?

Praia
Arruaça vem com um balde de gelo na cabeça. Ao passar pela frente do boteco, Sete-mola e Pé-Molhado começam a se divertir às custas dele.

Pé-de-Mola
Tá levano pedra d´água companheiro?

Sete-Mola
Tá suando gelado, meu irmão?

Arruaça
Deixa de brincadeira comigo!

Sete-Mola
Que é isso parceiro, tá estranhano os amigo?

Pé-Molhado
Como é que ta a temperatura aí em cima?

Arruaça
É melhor para com a brincadeira!

Pé-Molhado
Tá metido a porreta só porque entrou no ginásio?

Sete-Mola
Então toma cuidado parceiro, de tanto carregar pedra d´água na cabeça pode congelar teu juízo e tu ficar mais burro que a gente!

Arruaça
Já falei pra me deixar em paz!

Pé-Molhado
(Gozador quebrando a munheca) Aí meu Deus!

        Esgotou a paciência de Arruaça. Ele pára, coloca o balde no chão e rapidamente abre o canivete.

Arruaça
Quem for home, corra dentro! Pode vim os dois de vez!

        Pé-Molhado e Sete-Mola, apesar de serem mais velhos e bons capoeiristas, fingem temê-lo e saem correndo. Arruaça os persegue. As remendeiras comentam o episódio.

Toninha
É assim... Machão. Mania de briga!

Ceição
Não é atôa que botaro o nome dele de Arruaça

Toninha
Mas tu gosta dele!

Ceição
Gosto sim, mas né por isso qu’eu vou dexá de falá. Depois, é um gostá sem esperança...

Toninha
Não vejo porque!?


Ceição
Ô Toninha, ele tá estudano. Quando se formar não vai me querer mais!

Toninha
Isso é que você num sabe! O futuro a Deus pertence...

Ceição
É vem pai! (Aproximando-se dele) Bença pai?!

Severino
Que meu padim pade Cirço abençoe ôces tudo. Os peixe do mar, as fulo de mandacaru, o richo das cacimba e os passarinho do céu!

Ceição
Tomou seu café, pai?

Severino
Cadê João? Que hora que a canoa dele vorta?

Ceição
(Constrangida) Daqui a pouco pai...

Severino
Mentira! Mentira! O mar engoliu ele, canoa e tudo! O povo tira os peixe do mar; o povo joga a água amarela cor de enxofre do diabo nas água do mar. O enxofre do diabo mata os peise e evenena tudo. O mar fica com fome. O mar então precisa dos sangue dos pescador pra matar a fome. A fome do mar é grande.

        A Iaô aparece e para na frente de Severino. Eles se olham profunda e fixamente.

Ceição
(Conduzindo o pai pelo braço) Senta pai!

        Severino senta-se sobre uma pedra. Acalma-se e sua expressão se torna mais branda. Aos poucos inicia um cantarolar triste de uma velha canção sertaneja.

Boteco

Duzinha
(Referindo-se a Severino) Virge mãe! Isso me corta o coração...
Cazuza
Cada qual cumpre a sua sina.

Duzinha
É isso que me revolta!
Cazuza
Isso o quê criatura?
Duzinha
Essa pasmaceira. Essa conformação besta. Tudo que acontece, é sina, é a vontade de Deus...
Cazuza
E não é não?
Duzinha
Sei lá!? As vez fico pensano: será que a zanga de Deus é só pros lado dos pobre, é?
Cazuza
E rico não fica maluco também?
Duzinha
De ficá, fica. Mas não fica pela rua, dando dó na gente e metendo medo a menino!

        Raimundão se aproxima tocando berimbau. Com ele vêm Sete-Mola e Pé-Molhado. Iniciam jogo de capoeira. Com a chegada de Pedráo eles encerram o “brinquedo”.

Pedrão
Continua gente!
Pé-Molhado
A gente já brincou demais!
Raimundão
Escuta aqui ô Pedrão: por que você também não brinca um pouco? Eu sei que tu é bom de ginga!
Pedrão
(Entre gozador e vaidoso) Sou bom em tudo, rapá! Só que não faço gosto. Cês sabem que em terra tô sempre de passage. Meu bem querer é as lonjura do mar. No mar eu nasci, no mar quero morrer... Vamo tomá uma?

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

YEMANJÁ ( II )


YEMANJÁ
Rainha de Ayocá
ou A moça dos cabelos verdes [1]
De Jurema Penna


        O início da peça é marcado por um longínquo canto de puxada de rede (que mistura-se com o Ijexá de Oxum) e se aproxima aos poucos à medida que cresce a luz de amanhecer. Uma estranha mulher, com roupas longas e transparentes, flores e fitas nos cabelos longos observa o mar com olhar perdido: é a Yaô. Chegam à praia as remenderias de rede. Cazuza e Duzinha iniciam a arrumação da barraca de praia (boteco). Na casa de Pedrão, Arruaça toma café enquanto Dulce cuida da casa. As remendeiras preparam a rede prendendo-a em varais para iniciar o seu trabalho enquanto conversam.

Toninha
Cê viu, Ceição, a lua dessa noite?
Ceição
E quem não viu? (Mudando o tom) Me dá uma saudade tão doída...
Toninha
Saudade de quem “mulé”?
Ceição
Da minha terra.
Toninha
Por que tu saiu de lá?
Ceição
A seca. A gente “retirou”.
Toninha
Deve de ser triste...
Ceição
Se é?!
Toninha
Também é triste ficar aqui esperando. Têm sempre um medo danado apertando o coração da gente...

        Silêncio.

Ceição
Tomara que a rede venha farta!

        Cantam.

        Fui no mar buscar laranja
Coisa que no mar não tem
Voltei toda molhadinha
Das ondas que vão e vêm

        Casa de Pedrão. Arruaça acaba de tomar café.

Arruaça
Já vou mãe!
Dulce
Pra onde?
Arruaça
Vou dar uma mãozinha na puxada; depois vou buscar o gelo.
Dulce
No compadre Cazuza?
Arruaça
Não “sinhora”, vou no galego.
Dulce
Tá certo. Mas vê se não procura briga!
Arruaça
Não procuro não mãe. São eles que “provoca”.
Dulce
Vai com Deus e não demora. Teu pai está chegando...

        As remendeiras cantam.

                Como dói meu coração
                Esperar pelo meu bem
                Vou cantar uma cantiga
                Enquanto ele não vem

        Na barraca de praia (boteco).

Duzinha
Hoje vai ser um sol de torrar o miolo!
Cazuza
Até hoje ninguém torrou!
Duzinha
Já sim. Diz que Severino ficou assim foi do sol...
Cazuza
Mas não foi o sol daqui, foi o sol lá do sertão!
Duzinha
E tem dois sol é? Sol é um só!
Cazuza
Êita mulé descompreendida! Tu bem sabe o  qu`eu  “tô falano”... É que aqui tem brisa, tem sombra, não tem seca. Se o sol daqui torrasse miolo, tudo quanto era pescador tava de miolo mole, tudo doido por aí!
Duzinha
Mas anda tudo de chapéu na cabeça. Deve de ser “medo”.