segunda-feira, 11 de junho de 2012

PONTO DE VISTA SILENCIÁRIO DRAGADO


Pensamento EM OBRAS: O ASPECTO plástico DA ATIVIDADE

 

Prof. Dr. Ricardo Ottoni Vaz Japiassu


“E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, pleno de graça e de verdade; e vimos a sua glória...” (João I, 1963, p. 96)

A natureza histórico-sociocultural da atividade

Vive-se em um ambiente impregnado por diferentes formas de comunicação que não se restringem apenas à linguagem verbal. Diferentes veículos (mídias) têm sido utilizados para emissões e recepções de conteúdos significantes e significativos nas práticas relacionais humanas.

Nos processos semasiológicos culturalizados os sistemas sígnicos numérico e alfabético têm ocupado tradicionalmente papel de destaque na colaboração da mente social. Acredita-se que as origens do pensamento com signos particularmente com palavras e números devam estar conectadas à necessidade de comunicação entre humanos enredados por desafios à sobrevivência no mundo natural. Isso teria impactado sua atividade psíquica selando-lhes definitivamente a marca histórico-sóciocultural. (Leontiev, 1978; Luria, 1992; Vuigotskij, 1987).

Crendo-se nas origens histórico-culturais da humanidade torna-se razoável admitir que o aperfeiçoamento continuado de sofisticadas ferramentas para o trabalho aliado à complexificação da organização socioeconômica e política das forças produtivas ampliaram os poderes do psiquismo culturalizado.

O uso instrumental das tecnologias da informação e comunicação/TIC nas ações dos seres humanos voltadas para conversão do mundo natural em cultural, frutos do refinamento da cognição amparada em sistemas sígnicos, oportunizou conceber-se a mente social como rede não hierarquizada que interconecta diferentes portadores de significados irrigando generosamente sua atividade, isto é, hibridizando-a ou transfundindo-a com códigos extraverbais e extranuméricos particularmente na replicação (simulacro) do seu funcionamento psicofisiológico: o ciberespaço ou espaço imaterial configurado a partir de informações digitalizadas (Gibson, 1984).

A atividade segundo a Psicologia Cultural

As práticas laborais como princípio explicativo para a emergência da atividade psíquica culturalizada tem origem nas teses do materialismo-histórico-dialético (Marx, 1975, 1976). Só a partir da doutrina marxista acerca da natureza e da consciência foi possível a colaboração de uma teoria geral do pensamento tomando-se por fundamento a atividade (prática social objetiva subjetivada) como seu princípio inaugural e organizador (Vygotsky&Luria, 1996).

A concepção materialista-histórico-dialética das origens sociais da mente é o fundamento da teoria histórico-cultural/THC acerca da gênese e desenvolvimento psíquico atribuída a Vigotskii - cujo propósito original, conforme explicitado por ele mesmo, era o de contribuir e orientar a colaboração de uma “ciência” psicológica genuinamente marxista: a psicologia sócio-histórica. (Bock, Furtado, & Gonçalves, 2001; Elhammoumi, 2006; Romanelli, 2011; Vygotsky, 1994,1996).

Com a morte prematura de Vigotskii seus principais colaboradores, Leontiev e Luria, encarregaram-se de expandir e aperfeiçoar seu pensamento e simultaneamente submetê-lo às exigências da doutrina marxistamaterialista, propondo a teoria da Atividade/TA (Japiassu, 2007; Leontiev, 1983; Luria, 1994).

O que distingue a teoria da atividade/TA da teoria histórico-cultural/THC é a ênfase da TA no impacto das significações interssemióticas negociadas durante as relações sociais na atividade prática necessária ao trabalho, transcendendo o foco vigotskiano dirigido prioritariamente para o papel dos signos linguísticos (Luria, 1987; Zinchenco, 1998).

Leontiev e Luria tiveram oportunidade de iniciar e orientar vários investigadores nas tradições da pesquisa em psicologia sócio-histórica entre os quais Vasili Davidov (1988), Mario Golder (2002), Guillermo Blanck (Vygotsky, 2001) e Michael Cole (1998a). Destes, apenas Michael Cole (orientado pessoalmente por Luria) permanece ainda vivo, coordenando os trabalhos do Laboratório de Cognição Humana Comparada da Universidade da California em San Diego/UCSD ( www.lchc.ucsd.edu ).

A partir do aproveitamento de princípios marxianos e vigotskianos, sem deixar-se aprisionar pela doutrinação marxistamaterialista, Cole (1998a, p. 6) propõe a teoria histórico-cultural da atividade/THCA como sustentáculo de uma psicologia cultural: a tentativa de unificar a teoria da atividade/TA com a teoria histórico-cultural/THC e dialogar com outras perspectivas para a compreender melhor o funcionamento da mente social.

A psicologia cultural é descrita por Cole (1998a, p.104-105) como disciplina congregadora das vertentes naturalista e culturalista dos estudos do pensamento baseada em uma abordagem sócioculturalista “não eclética” ao psiquismo tipicamente humano, em resposta ao “bate-boca” entre defensores intransigentes da “diferença” ou especificidade das teorias histórico-cultural e da atividade, ambas oriundas do programa de estudos e pesquisas inaugurado por Vigotskii.

A psicologia cultural é a convincente argumentação de Cole em resposta às acusações de o sócioculturalismo (escola pan-americana de psicologia inaugurada por ele) e sua THCA orquestrarem um movimento transnacionalizado para despir a teoria histórico-cultural/THC de sua matriz materialista-histórico-dialética. (Duarte Jr., 2001; Elhammoumi, 2009; Toomela&Valsiner, 2010)

Discutir se ocorre ou não uma tentativa de assepcia da fundamentação materialistamarxista da THC por parte do sócioculturalismo nos parece enfadonho por sua insistente resiliência em fóruns acadêmicos nos quais neomarxistas reivindicam o direito exclusivo à propriedade de teorias fundadas no materialismo-histórico-dialético. Discutir isso nos levaria a perder de vista o que nos propomos modestamente aqui: expor abreviada e velozmente nosso ponto de vista sobre o impacto das TIC na formação da mente social focalizando particularmente o aspecto plástico da atividade quando o pensamento permanentemente em obras, em processo continuado de colaboração e desenvolvimento, deixa-se irrigar por diferentes lexias em sua intricada teia de conexões à moda hipertextual.

Faz-se necessário ressaltar que em suas conspícuas narrativas teorizantes sobre a atividade nem Leontiev tampouco Luria negam que Vigotskii tenha renunciado às convicções materialistas-histórico-dialéticas acerca das origens sociais da mente. Sua principal ocupação é preservar os saberes obtidos com as primeiras investigações de orientação vigotskiana e, honestamente, trazerem a público uma autocrítica da “troika” (trinca de pesquisadores elencada por eles sob a liderança de Vigotskii) reconhecendo os limites dos estudos que se ocuparam incialmente em privilegiarem o papel do pensamento verbal na formação da mente social.

É oportuno lembrar que Vigotskii reconheceu explicitamente como legítima a tese materialista-histórico-dialética de que as origens do psiquismo culturalizado encontram-se na atividade prática colaborativa - o que pode ser constatado no seu questionamento corajoso do postulado bíblico apresentado no versículo primeiro do Evangelho I segundo João (1963) de que “no princípio era o Verbo” (p. 95): “a palavra não foi o princípio – a ação já existia antes dela; a palavra é o final do desenvolvimento, o coroamento da ação” ( Vygotsky, 1993,  p. 131).

A TA busca compreender como a atividade prática impacta os mecanismos fisiológicos do cérebro através da plasticidade das interconecções neuronais destacando de modo mais contundente o papel da subjetivação como mediação replicada interposta no trânsito entre processos mediatizados por ferramentas e sistemas sígnicos e seus produtos, em múltiplas ocupações sociais. (Leontiev, 1983). 

A THCA procura congregar o foco “linguístico” ou “signocêntrico” da THC (Luria, 1994, 1987) e o foco “ocupacional” ou “trabalhista” da TA (Engenstrôm, 1990, 1987) enfatizando o interacionismo (interatividade ou interação) subjacente às transações relacionais semânticas negociadas em variadas práticas sociais, necessariamente mediadas por ferramentas e signos (Alvarez, del Rio, & Wertch, 1998).

O aspecto plástico da atividade

Sabe-se que a atividade impactada pelo uso de sígnos subverte a natureza não mediada ou “biológica” dos seres humanos (Oliveira&Oliveira, 1999; Rego, 1995). Osório (1999) resume a importância dos sistemas sígnicos para o poder de ação dos humanos sobre o meio ambiente e sobre si mesmos quando afirma que:

      Ao povoar o mundo de signos o homem dá um sentido ao mundo, pensa com os signos e é por eles pensado. A linguagem é que permite ao homem transitar entre o concreto e o abstrato da realidade, entre passado-presente-futuro, sem ela o homem ficaria preso para sempre no presente sem qualquer poder de discriminação. (p. 177).

Segundo a THC o processo de formação da mente social pressupõe a colaboração de conceitos através do manejo consciente (intencional) dos significados das palavras usadas para os referir. Seu postulado é o de que a linguagem verbal é prerrogativa para a construção do psiquismo culturalizado. Na perspectiva da THC só o uso inter e intrapsiquíco do sistema alfanumérico oferece a possibilidade de transcendência da instantaneidade, isto é, de podermos ir além dos limites impostos pelos modos de pensamento vinculados ao campo perceptivo dependente da materialidade dos objetos e de sua vivência intuitiva ou sensacional (Husserl, 2005)

Já a TA, como foi dito, insiste em assinalar que, por trás das significações alfanuméricas encontram-se os sentidos subjetivados por outros sistemas sígnicos nas ocupações laborais – o que permite reconhecer não ser a linguagem verbal a única portadora de significações nas práticas relacionais necessárias ao trabalho coletivo (Leontiev, 1983).

Mas é o foco interacionista da psicologia cultural que interessa na exposição do nosso ponto de vista acerca do impacto das formas amalgamadas de linguagem na formação e funcionamento da mente social.

Defendemos que as neoformações signicas multiléxicas, valorizadas pelo uso crescente e generalizado das TIC como ferramentas e instrumentos eficazes para potencializar as relações interpessoais negociadas em práticas sociais contemporâneas, impactam irreversivelmente o psiquismo culturalizado.

Na contemporaneidade o uso generalizado das tecnologias digitais oportuniza o entendimento de que várias linguagens encontram-se enredadas em interssemiose simultânea, congregando sistemas sígnicos verbais e extraverbais, no processo de replicação da mente social como ocorre no modelo hipertextual ou cibernético (Bacalarski, 1994; Leontiev, 1983; Luria, 1987).

A metáfora que permite uma aproximação da ideia de plasticidade ou flexibilidade para referir o funcionamento “hipertextual” da atividade na colaboração da mente social é a rede ou conforme Deleuse&Guatarri (1983) rizoma (imagem de bulbos e tubérculos usada para referir as múltiplas ramificações que designam o modelo semântico não hierarquizado e dinâmico que entrelaça cadeias semióticas de vários tipos conectadas a diferentes modalidades de codificação ou lexias).

Este modo de conceber a atividade pressupõe um tipo particular de funcionamento psíquico referido como pensamento complexo ou multirreferencial (Morin, 1990).  Nesta perspectiva os conceitos não se apresentam mais elencados “seriadamente” (sucedendo-se uns como prerrogativas de outros) nem em forma de “espiral” (uns elevando outros) - como as pesquisas originalmente informadas pela THC nos levam a crer.

Tanto os conceitos sociais (científicos) como os cotidianos (não científicos), segundo a psicologia cultural, interatuam na atividade como “nós” de uma malha, teia ou rede de significações “horizontalizada” não possuindo fronteiras rigidamente definidas, como ocorre nas representações bidimensionais das cartas geográficas; seus contornos encontram-se “borrados” ao modo das projeções tridimensionais em pixels (representações de imagens por meio de pontos luminosos nas telas de TVs e computadores). Este tipo de entendimento “plástico”, flexível e sujeito a alterações de “rotas” da atividade psíquica por parte da THCA solicita o aproveitamento metacrítico do tradicional e “rígido” paradigma modernista hegemônico de cognição da THC.

Sabe-se que Vigotskii e Luria em parceria com Eisenstein (1990a, 1990b) interessaram-se por investigar a plasticidade dos processos de colaboração de conceitos e a metacognição na mente social quando esta veio a ser impactada pelo uso da “escrita” cinematográfica, focalizando particularmente o que, naquela ocasião, denominaram de “protolinguagem” ou “monólogo interior” - formações “hibridizadas” constituidas pela fusão do pensamento verbal e icônico na montagem da sintaxe e semântica audiovisual. Investigações que lamentavelmente foram interrompidas por proibição explícita do dogmatismo intransigente marxistamodernista-stalinista (Cabral, 2008; Valsiner&Veer, 1996).  

Eisenstein (1990b) chegou a afirmar que a “escrita” cinematográfica “é uma reconstrução das leis do processo do pensamento” (p. 102) e defendeu que a atividade irrigada por sistemas sígnicos extraverbais revela “uma construção de um tipo de pensamento sensorial e, como resultado, em vez de um efeito ‘lógico-informativo’, recebemos da construção, na verdade, um efeito emocional-sensorial” (p. 124).  

O próprio Eisenstein (1990a) chega a mencionar explicitamente o interesse em comum com Luria e Vigotskii na investigação da “correspondência de sons e sensações não apenas com emoções, mas também um com o outro” ( p.91-92)

Com a digitalização de imagens, sons e textos ocorre a abolição dos suportes materiais para a representação dos sistemas sígnicos (Berckeley, 2005) passando estes a existirem imaginariamente a partir do movimento de bits ou unidades de informação digital com base na combinatória de números, sem peso, à velocidade da luz (Calazans, 1997).

Paralelamente ao desenvolvimento tecnológico que oportunizou a criação de realidades virtuais (RVs), a descoberta pela TA da plasticidade das conexões neuronais demonstrada por inúmeros estudos neurocientíficos das rotas alternativas destas conexões, trilhadas no processo de reconstrução de funções psíquicas por parte de sujeitos acometidos por severos danos em regiões cerebrais a elas correspondentes (Luria, 1991), vieram corroborar a pertinência do modelo hipertextual adotado pela THCA para descrever e compreender o aspecto plástico da atividade psíquica tipicamente humana.

Diversidade cognitiva

A abordagem ao psiquismo humano da THCA apropria-se da metáfora de rede para referir o aspecto plástico da atividade aproveitando a importante noção de subjetivação e “mediação replicada” da TA e seu relevante papel nas negociações de sentido em práticas relacionais (interações presenciais e não presenciais mediatizadas e irrigadas pelo uso de diferentes ferramentas e sistemas sígnicos extra-alfanuméricos).

Não é difícil concordar que a “leitura” e “escrita” digitalizada de hipertextos impactam sócio-historicamente os processos de colaboração da atividade psíquica culturalizada. Cada vez mais, na contemporaneidade, as pessoas recorrem à mixagem de diferentes lexias ou linguagens em modo digital para se relacionarem e colaborarem práticas sociais mediadas pelas TIC no ciberespaço (Levy, 1999).

Os sistemas sígnicos extra-alfanuméricos ganham significações culturalmente negociadas em processos interativos a partir da subjetivação pessoal. Primiano (1990) ressalta o papel de destaque da imagem e o seu impacto no psiquismo culturalizado quando esclarece que “sua utilização é frequente e a tendência é ampliá-la, havendo até quem anteveja a possibilidade de, um dia, a imagem substituir a palavra escrita” (p. 206).

Se é verdade que o uso das TIC incrementam a diversidade cognitiva justifica-se a pertinência de estudos mais aprofundados da gênese e desenvolvimento dessas neoformações amalgamadas ou “hibridas” (protolinguagens) nos processos de pensamento para elucidar como o signo verbal é transfundido ou irrigado por outras lexias (Lèvy, 1998; Santaela, 1983).

Defender o estudo da diversidade cognitiva oriunda do uso instrumental do computador e das TIC como “mediação replicada” nas práticas relacionais colaborativas não implica menosprezar o papel desempenhado pelo sistema alfanumérico na formação da mente social, mas admitir o empoderamento do signo linguístico através da irrigação por parte de outras lexias em processos singulares de subjetivação. Afinal não é possível usar plenamente essas tecnologias se não se possui competência no uso fluente de signos verbais e não verbais, como adverte Gomez (2004): “o uso do computador origina um retorno ao textual/oral. Não é possível usar um computador se não se lê ou se escreve e, ainda mais, se não se tem conhecimento e desempenho no uso de signos linguísticos e não linguísticos” ( p. 59).

A diversidade cognitiva têm sido defendida por inúmeros estudos na contemporaneidade numa perspectiva psicobiológica ou “naturalizante” da atividade (Gardner, 1994; Goleman, 1995). Do ponto de vista da psicologia cultural as pessoas aprendem os modos de ser e pensar historicamente colaborados negociando semanticamente o conteúdo de suas relações interpessoais, desde o nascimento, através de processos singulares de subjetivação que conduzem o aprendizado do uso e manejo cada vez mais eficaz de variados artefatos culturais – aspectos do mundo material incorporados às ações dos seres humanos e interpostas entre estes e o ambiente físico e social em que interagem (Cole, 1998b, p.163).

O aprendizado na perspectiva da psicologia cultural ocorre nos processos negociados de colaboração das significações nos quais dá-se a efetiva participação relacional do sujeito em ocupações sociais mediadas pelo uso de artefatos culturais historicamente desenvolvidos a partir da interatividade ou interacionismo.

A noção de interatividade na perspectiva da psicologia cultural abrange vários sentidos: refere tanto (1) a escolha de um percurso específico para acesso a conteúdos através de interfaces gráficas amigáveis ou intuitivas (superfícies de contato da relação homem-computador mediadoras ou tradutoras de ações ou “comandos.”) como também (2) a conexão de temas e ideias em forma de “dobras” resultantes da combinatória entre diferentes lexias (modos de “grafia” pertinentes às diferentes linguagens presentes em neoformações semânticas amalgamadas).

Além destes dois sentidos refere ainda (3) o interacionismo (a interação entre pessoas mediada por ferramentas e instrumentos) subjacente aos processos de significação subjetivados e negociados nas ações inter-relacionais em ocupações sociais que enredam o intercâmbio das experiências pessoais de sujeitos com diferentes competências no manejo de artefatos culturais.

Na concepção interacionista ou sócioculturalista de aprendizado da THCA o sujeito atribui significações às ações conjuntas nas práticas sociais que o enredam por subjetivação em processos usualmente descritos nesta perspectiva como (1) participação guiada - baseados em instruções explícitas e (2) observação periférica (Rogoff, 1988) - fundamentados na “imitação” ou “reação caótica” (Pavlov, 2005).

Entre estas duas categorias forjadas pela psicologia cultural para referir dicotômica e ilustrativamente os modos sócio-históricos típicos do aprendizado humano sugere-se aqui interpor uma terceira e promissora via de acesso à cognição: (3) a imersão voluntária – experimentação lúdica da fusão homem-máquina ou adesão à “alucinação consensual” consentida para a vivência vicária em realidades imateriais pelo uso “intuitivo” de interfaces gráficas amigáveis e próteses corporais (Burdea&Coiffet, 1994)

Repercussões pedagógicas da plasticidade da atividade psíquica

O ambiente relacional subjacente às práticas sócioculturais cotidianas e extracotidianas no qual ocorrem os processos de negociação de significação das ações coletivas costuma ser descrito pela psicologia cultural como Zona de Desenvolvimento Proximal/ZDP.

A ZDP é a metáfora usada originalmente por Vigotskii (2001) para referir a região entre o “nível de desenvolvimento potencial” e o “nivel de desenvolvimento real” como justificativa para contestar as crenças hegemônicas no método supostamente “científico” de mensuração “estática” da inteligência de Binet&Simon – os “vestibulares” ou testes para medir o QI (quociente de inteligência): “A deficiência comum a esse tipo de pesquisas experimentais consiste em que se coloca como fundamento uma noção completamente errônea sobre certos dons de inteligência gerais.” (p. 297-306).

A crença cognitivistamodernista hegemônica na possibilidade de “medição” do conhecimento genuíno, unicamente possível a partir de intervenções pedagógicas na ZDP - têm caracterizado muitos estudos de orientação vigotskiana voltados para a aplicação educacional deste artefato cultural – revelando uma ocupação obssessiva de educadores e psicólogos com a “medição” supostamente mais objetiva e rigorosa dos “níveis” de desenvolvimento cognitivo de escolares submetidos a processos de letramento que em geral privilegiam o manejo dos sistemas sígnicos alfanuméricos. Este uso “pragmático” da ZDP tem sido o alvo de ataque por parte de socioculturalistas que propugnam um entendimento menos tépido deste conceito, como é o caso das teses de Holzman&Newman (2002, 2006).

Embora a concepção de aprendizado a partir da interatividade (interacionismo) seja a que possui maior número de adeptos entre os que estudam os fenômenos educativos com a generalização do uso das redes telemáticas e do ciberespaço tanto no âmbito da escolarização quanto no das ações culturais, observa-se que esta tem sido propugnada para legitimar relações assimétricas de poder típicas de concepções “modeladoras” das inter-relações entre aprendizado e ensino presencial, semipresencial ou à distância (Andrade&Vicari, 2003). 

Apropriações aligeiradas do tipo “ready made opinion” ou “prêt-à-porter” desta importante metáfora da inter-relação dialética entre aprendizado e desenvolvimento (ZDP) têm sido fartamente identificadas nas justificativas “teóricas” da “pressão instrucionista” em vários níveis da escolarização.

A mediação das tecnologias digitais e telemáticas nos cenários educacionais, do nosso ponto de vista, implica advogar novos modos de pensar e compreender as práticas pedagógicas particularmente quando se elege a cibercultura como emblemática da atividade psíquica na contemporaneidade.

A cibercultura ou “cultura da simulação” refere o simulacro lúdico presente em grande parte dos jogos eletrônicos.  Nela, a simulação da atividade prática (exteriorizada e internalizada) pressupõe as vivências ludopedagógicas afetivas e sensoriais oportunizadas pela imaginação ou “alucinação consensual” em realidades virtuais (RVs) através da imersão voluntária. (Baudrillard, 1991; Turkle, 1989)

A imersão voluntária é um modo de entender a atividade psíquica cognoscente que proporciona o aprendizado por subjetivação e que traduz a “adequação” instantânea de ações do sujeito informada pelas peculiaridades de uma situação (ZDP) que impacta a sua conduta como “atividade orientadora” dos seus modos de agir, ou seja, como “regulação” do seu psiquismo (Davidov, 1988).

Neste modo culturalizado de cognição vários dispositivos informáticos e telemáticos oportunizados pelo simulacro lúdico solicitam formas alternativas de conhecer: aprende-se com a descontinuidade; aceita-se a colaboração de rotas não previamente definidas no traçado de percursos da atividade psíquica por imersão voluntária na iconosfera (Rushkoff, 1999; Tapscott, 1999).

A iconosfera refere o ambiente hipertextual do ciberespaço nas RVs - um espaço topológico não euclidiano no qual as imagens revelam sentidos por justaposição intencional (conscientemente ou não) para a comunicação de pensamentos e emoções, solicitando um tipo particular de aprendizado marcado pela falta de compromisso com uma lógica teleológica, seriada e cumulativa ou “aristotélica”.

Trata-se do engajamento relacional do sujeito em processos negociados de significação baseados na reunião de amálgamas multiléxicos nos quais imagens, palavras e sons se sobrepõem, constituindo o que originalmente Eisenstein (1990a) designou como montagem: um tipo de enunciado que revela procedimentos paratáticos (relações topológicas significantes “para o outro”, “em si” e “para si” à moda da escrita ideogramática chineza).

Esse tipo de lexia amalgamada ou “híbrida” converte conglomerados de imagens, sons e palavras em metalinguagem interpretável mediante o desenvolvimento de um tipo de pensamento “mítico” que não opera com conceitos abstratos à moda do pensamento baseado exclusivamente nos sistemas sígnicos alfanuméricos mas a partir da observação e da organização metafórica especulativa urgente: do mundo sensível em termos do sensível, ou seja, como uma espécie de “bricolagem intelectual” (Levi-Strauss, 1976).

Os conhecimentos e saberes obtidos a partir do aprendizado oportunizado pela imersão voluntária no simulacro lúdico devem ser considerados incompletos, provisórios, circunstanciais e plásticos, isto é, performáticos: passíveis de permanente ressignificação ou atualização (Japiassu, 2010).

A interatividade e a interconectividade favorecidas pelas tecnologias digitais oportunizam a valorização da diversidade cognitiva pela disseminação e aglutinação mais ágil de ideias e dados nos processos de imersão voluntária do sujeito, ocupando-o simultaneamente com diferentes tarefas.

O aspecto plástico ou “errático” da atividade psíquica empoderado pelo uso das TICs acaba por assustar educadores, psicólogos escolares e cuidadores não suficientemente familiarizados com abordagens “horizontalizadas”, seus percursos alternativos e ritmos acelerados na execução de tarefas particularmente nos simulacros lúdicos.

A tomada de papéis ou avatares é emblemática da recusa do sujeito para com a estigmatização de sua conduta e prescrição de seus modos de pensar e ser. Ao “vestir” um avatar a pessoa descobre que não se encontra mais obrigada a manter-se fiel à uma única identidade; que lhe é possível performar diferentes modos de existir, de trilhar percursos alternativos e descobrir-se continuadamente tornando-se outro (Holzman&Newman, 2006). Os avatares são “personalidades virtuais” descartáveis assumidas provisoriamente nos processos de subjetivação em práticas relacionais negociadas em RVs (Assis&Prado, 2001).

A performance na tomada de “personalidades eletrônicas” traduz exemplarmente a flexibilidade dos processos de significação negociados nas práticas relacionais entre pessoas mediadas pelas TICs, e entre elas e as máquinas, emblematizando a dinâmica da atividade psíquica na contemporaneidade (Gomez, 2004).


Últimas considerações

Reconhecer a “aceleração” do pensamento com o uso das TICs não implica desconsiderar os riscos da superficialidade no entendimento das ações inter-relacionais colaborativas por parte dos considerados “idiot-savants” (usuários habilidosos e colecionadores de informações) ou “fast thinkers” (pensadores velozes) tampouco deixar de levar em conta os aspectos “irreflexivos” da intuição. (Ramal, 2003).

As vivências lúdicas de realidades imateriais podem gerar dois tipos de visão nos processos de aprendizado por imersão voluntária: um “olhar cego” (não consciente) e outro “crítico” (consciente) – o que requer compromisso dos responsáveis por intervenções pedagógicas mediadas pelas TICs em desvelar “semblantes” ou “cadeias de significação” aos quais as pessoas se deixam aprisionar nas tramas em rede voltadas para a domesticação de suas singularidades (Mrech, 1999).

O surgimento do homem-máquina resultante das interações com interfaces gráficas amigáveis e próteses corporais, por amálgama ou “hibridização” da subjetividade com a máquina, sinaliza a emergência do que se poderia denominar pensamento cyborg (Alves&Nova, 2003) - uma simbiose entre o humano e sua réplica ou extensão metalizada que resultaria em uma espécie de falassermáquina. (Lacan, 1982).

O mundo imagético da iconosfera sem dúvida solicita, na imersão voluntária, a satisfação instantânea de desejos em detrimento da metacognição, mobiliza processos de cognição intuitivos que fragilizam o poder de argumentação verbal e oportunizam descargas afetivas através de movimentos urgentes automatizados e irrefletidos. 

Existem ainda muito poucas pesquisas acerca do impacto na vida afetiva e cognitiva das pessoas com a “hiperestimulação” oportunizada pela exposição prolongada à iconosfera e ao ciberespaço. Especula-se sobre a elevação do stress, irritabilidade, impaciência e indisposição para negociação verbal (oral e escrita) paralelamente a ganhos na “produtividade”, velocidade e acuidade da cognição proporcionada pelo uso preferencial do pensamento-ação, sensorial e/ou mítico.

Não se encontram ainda disponibilizados resultados obtidos a partir de rigorosas investigações experimentais voltadas para o estudo do impacto do uso das TICs no psiquismo tipicamente humano que busquem destacar a natureza sóciocultural e plasticidade da atividade irrigada por múltiplos sistemas sígnicos na perspectiva da psicologia cultural.

Entendemos que é fundamental apoiar e acolher pesquisas que permitam compreender mais e melhor o impacto do uso das tecnologias digitais nos modos de ser e pensar das pessoas na contemporaneidade. Empreendimentos investigatórios que nos permitam

     transitar por uma zona fronteiriça, extremamente rica e fértil para as investigações no campo da educação e da psicologia (sobretudo da psicologia que se apóia nos postulados da abordagem histórico-cultural), em que se cruzam os modos de ser, pensar e agir do sujeito e sua cultura, mais especificamente da cultura escolar. (Rego, 2002, p. 73)



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